Março - 2023 - Edição 289
O brilho de Proust
Estive no pampa gaúcho,
soprado pelos ventos de Gilberto
Schwartzmann, diretor da Biblioteca
Pública Estadual de Porto Alegre, um
notável colecionador literário, autor do
livro A Amante de Proust e membro
da Academia Nacional de Medicina, para dizer algumas palavras
sobre esse incrível escritor que foi Marcel Proust (1871-1922). Na
capital do Rio Grande do Sul, não pude deixar de me lembrar do
meu saudoso colega acadêmico Moacyr Scliar, autor de mais de 80
livros, falecido em 2011.
A harmonia da ascendência comum, o judaísmo, explica
muita coisa das nossas crenças espirituais e literárias. Membro
há 35 anos da Academia Brasileira de Letras, da qual hoje sou
vice-decano, sempre me interessei, particularmente, pela cultura
francesa. Talvez por isso seja natural que tenha recebido a Légion
d´Honneur e a Ordem das Letras e das Artes do governo francês
Educação e Judaísmo são atividades que sempre estiveram
entrelaçadas, como se pode observar no livro Ensaios Judaicos, do
professor Jaques Ribenboim, experiente membro da comunidade
judaica do Recife, que assinala: “Existe uma tradição de letras no
povo de Israel. O livro mais lido do mundo (a Bíblia) foi escrito por
seus descendentes.”
O escritor judeu produz uma escrita judaica, embora não
trate especificamente de temas judaicos. Marcel Proust teve um
brilho especial na história do romance francês do século XX, particularmente em virtude do sucesso de Em busca do tempo perdido,
obra publicada em sete partes, de 1913 a 1927. Nela está a ideia
de que a obra literária tem por objeto voltar a encontrar, além do
escoamento estéril da vida cotidiana e mundana, o universo espelhado pelo espírito e considerado, sob o aspecto da eternidade,
que é também o da arte.
Com a saúde fragilizada desde a infância por conta da
asma, a vida de Proust é, sem dúvida, o testemunho do permanente esforço para adaptação à doença, para a resistência ao sofrimento. Chegou até a dizer que “a ideia da morte o acompanhava
com a mesma constância quanto a da própria identidade”.
George Cattaui (1896-1974), escritor francês de origem
egípcio-judaica, que publicou vários ensaios e biografias, analisou
que o prazer na dor e na atribulação deveria, em parte, ser creditado ao sangue judeu de Proust, que o levava a considerar com
desprezo ‘‘o mundo inumano do prazer”, e a defender o princípio
de que “toda a criação tem que exigir ascese e sacrifícios”. Para ele,
a arte traduzia um valor absoluto. E a própria obra literária mostra
muito bem a relação que existiu entre o romancista e o mundo que
procurou apresentar ao leitor. Já se disse que a doença está para
o romance de Proust, como o dinheiro na estrutura da Comédie
Humaine. Há estudiosos que afirmam que ele foi “o Balzac do fim
da alta burguesia”, que teria escrito “o epitáfio da aristocracia francesa”.