junho - 2022 - Edição 280

Reflexão médica

A medicina não é uma ciência exata. Seu exercício está sujeito a fatores imprevisíveis que variam de paciente a paciente – tendo sempre a finitude humana no horizonte. Essa parcela do imponderável é matéria para o relato de Drauzio Varella, oncologista que se tornou nacionalmente conhecido como um dos primeiros médicos a fazer uso dos canais de comunicação de massa para propagar informações sobre saúde e conscientizar sobre bons hábitos. Em O Exercício da Incerteza – Memórias (Companhia das Letras), o autor narra com sensibilidade e franqueza episódios de sua vida a partir do fio da medicina. Por sua prosa fluida, acompanhamos momentos críticos, como a pandemia do HIV e a epidemia de tuberculose nos presídios em que atendia voluntariamente, e outros celebrados, como a bem-sucedida campanha de combate ao uso de drogas injetáveis no Carandiru, que capitaneou. Estas memórias ultrapassam o registro biográfico ao fazer uma reflexão sobre a prática médica, que figura nestas páginas como arte que exige humildade, estudo, empatia e habilidade para atravessar os reveses do acaso. Drauzio Varella nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Medicina pela USP, trabalhou por vinte anos no Hospital do Câncer. Foi voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), na Penitenciária Feminina da Capital e hoje atende no Centro de Detenção Provisória do bairro Belém (São Paulo). É autor, entre outros, de Estação Carandiru (1999), que ganhou os prêmios Jabuti de Não Ficção e Livro do Ano.

Sonhos de fuga

O Pianista da Estação (Editora Vestigio), terceiro romance do autor e também diretor de cinema e roteirista Jean-Baptiste Andrea, é um premiado e emocionante romance de formação sobre a orfandade, a música, a amizade e o amor. Vencedor do Grand Prix RTL-Lire (2021), o livro conta a história de Joseph Marty, um senhor de 69 anos que toca Beethoven divinamente em pianos públicos. Um dia ele está numa estação de trem na Europa; outro, em um aeroporto nos Estados Unidos. Joe desperdiça seu talento em meio a viajantes indiferentes, e parece estar sempre à espera de alguém. É com muita poesia e sensibilidade que o autor nos apresenta Joe, um homem talentoso que emociona a todos quando toca, mas visivelmente machucado pela vida e marcado pelas tragédias do passado. Ainda adolescente, com a morte brutal de seus pais e irmã, ele passa a viver em um orfanato com práticas pedagógicas questionáveis. Apesar do ambiente hostil, as amizades que cruzam seu caminho trazem conforto e esperança em meio ao sofrimento e à solidão. O encontro improvável com Rose, uma jovem da mesma idade, lhe dá outra perspectiva e sua vida passa então a se resumir a sonhos de fuga. Jean-Baptiste Andrea nasceu em 1971, na cidade francesa de Saint-Germain-en-Laye. Cresceu em Cannes, conhecida por ser a sede do principal evento cinematográfico da Europa. Foi em Cannes que começou a fazer curta-metragens antes de se mudar para Paris e se formar em Ciência Política e em Economia. Em parceria com Fabrice Canepa, escreveu e dirigiu seus primeiros filmes: Rota da morte (Dead End), Grande coisa (Big Nothing) e Irmandade das lágrimas (La confrérie des larmes).

Desigualdade racial

Lugar de Negro (Editora Zahar) reúne três textos de duas grandes referências nos estudos das relações entre desigualdade e raça – Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg –, sintetizando pontos centrais da questão racial brasileira e contribuindo para fortalecer uma luta fundamental do movimento negro naquela época: descontruir o mito da democracia racial, incitado durante a ditadura. Numa perspectiva intimista, Lélia Gonzalez dedica-se aqui a apresentar o processo de consolidação do movimento negro no Brasil, culminando na criação do MNU, em 1978, na qual exerceu protagonismo. Carlos Hasenbalg, por sua vez, analisa os principais aspectos acerca da configuração do racismo e das desigualdades no Brasil. Seguindo sua linha investigativa pioneira, ele demonstra que relegar a discriminação ao reflexo das relações de classe subestima o papel da opressão racial na própria constituição das hierarquias sociais. Publicado originalmente em 1982, este livro apresenta ainda hoje reflexões cruciais para a agenda intelectual e política do Brasil. Lélia Gonzalez (1935-94) foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século XX. Autora de extensa produção escrita, grande parte de sua obra encontra-se reunida na coletânea Por um Feminismo Afro-latino-americano, publicada pela Zahar. Carlos Hasenbalg (1942-2014), sociólogo argentino, foi um dos grandes nomes das ciências sociais brasileiras contemporâneas, com lugar de destaque na consolidação dos estudos sobre desigualdades raciais. Autor de vasta obra, seu livro Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil (1979) é um divisor de águas na literatura sobre o tema.

Paternidade

Em seu novo romance, João Maria Matilde (Editora Autêntica Contemporânea), Marcela Dantés, autora finalista dos prêmios São Paulo e Jabuti 2021, narra uma história sensível sobre laços familiares, loucura, hereditariedade e raízes. Perto dos quarenta anos, Matilde, uma mulher forte e independente que pensava ser filha de pai desconhecido, recebe um telefonema que desorganiza sua vida. O português João Maria é seu pai, já está morto e deixou um testamento, que a inclui, a ser lido com data e hora marcada em uma pequena vila além-mar. Deixando no Brasil o namorado, Abel, e Beatriz, a mãe que sofre com um Alzheimer precoce, a protagonista, já em Portugal à espera da leitura do testamento, faz um mergulho tão inesperado quanto solitário em seu passado desconhecido. Psicologicamente fragilizada, Matilde se vê obrigada a enfrentar seus maiores medos, a síndrome do pânico e alguns delírios que insistem em aparecer quando ela mais precisa de lucidez. Na busca por suas origens, é na terra de seu pai que ela encontra uma versão surpreendente, emocionante e transformadora de si mesma e de sua história. Marcela Dantés nasceu em Belo Horizonte em 1986. Em 2021, seu romance de estreia, Nem Sinal de Asas, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria Melhor Romance de Estreia, e do Prêmio Jabuti, na categoria Melhor Romance Literário. Em 2016, foi a autora residente do Festival Literário Internacional de Óbidos (FOLIO), em Portugal. Este João Maria Matilde começou ali.

Passado desenterrado

A Mesa dos Jogadores (Editora Alta Books) de Jessica Goodman é um thriller apaixonante sobre poder, privilégio e a perigosa busca pela perfeição dos jovens do ensino médio. Tudo na vida de Jill Newman e de seus amigos parece perfeito. É um milagre que alguém saia vivo do Ensino Médio. Brilhantes, intocáveis, destinados à grandeza, eles têm as melhores festas, as melhores notas e a admiração de toda a escola. Este vai ser o ano de sua vida. Ela tem certeza disso. Até que a memória de um evento trágico ameaça ressurgir. Três anos antes, a melhor amiga de Jill, Shaila, foi morta pelo namorado, Graham. Ele confessou, o caso foi encerrado e Jill tentou seguir em frente. Mas quando começa a receber mensagens de texto anônimas proclamando a inocência de Graham, a perfeição do ano de Jill se desfaz. Se Graham não matou Shaila, quem o fez? Ela promete descobrir, mas tem alguém disposto a fazer o que for preciso para garantir que o passado permaneça enterrado. Trauma Contundente. É o que diz a certidão de óbito. É o que ficharam no livro de registros. Mas isso nem de longe diz como Shaila morreu. Não tem como saber se ela morreu de raiva, de traição. De querer muito de uma vez. De nunca se sentir satisfeita. Sua raiva consumia tudo. Sei disso porque também era como eu me sentia. Por que tivemos que sofrer daquele jeito? Por que fomos escolhidas? Como perdemos o controle? É como se um monstro vivesse dentro de mim. Ele se instalou, fica à espreita esperando para rasgar meu peito e se mostrar. Eu me pergunto se foi assim que Shaila se sentiu em seus últimos momentos de vida. Jessica Goodman é autora de thrillers para jovens adultos e editora sênior da revista Cosmopolitan.

Raiz da poesia

A Escravidão na Poesia Brasileira (Editora Record) de Alexei Bueno é a única antologia feita até hoje tendo como tema a escravidão. Cobrindo quase três séculos e meio de poesia, reúne cerca de 80 poetas e mais de 200 poemas, alguns deles esquecidos e outros nunca publicados em livro. Alexei Bueno, poeta, ensaísta crítico, tradutor e editor renomado, realizou uma tarefa difícil e inédita: selecionou e organizou criteriosamente poetas e poemas que abordam o tema da escravidão no Brasil, do século XVII ao XXI. A mais primitiva e cruel das relações de trabalho esteve vigente em nosso país por três séculos e meio, da Colônia ao Império, e deixou marcas profundas e traumáticas na alma nacional. Se a escravidão teve forte presença nas artes visuais, na música e na ficção, a verdade é que sua marca foi mais efetiva na poesia, pois nenhuma outra forma de arte deixou peças tão icônicas na memória brasileira como O navio negreiro e Vozes d’África, de Castro Alves, ou Essa negra Fulô, de Jorge de Lima, três exemplos mínimos em uma imensa constelação. A escravidão na poesia brasileira é mais que uma antologia, é um ensaio antológico em que o organizador Alexei Bueno, além de reunir poetas e poemas, elenca subtemas essenciais no ensaio introdutório (a viagem ultramarina, a separação das famílias, os castigos físicos, revoltas e fugas, os quilombos, as figuras míticas etc.) e, ao final do volume, fornece verbetes com um retrato de cada um dos poetas e uma análise dos poemas aqui reunidos. Muitos desses poemas nunca foram publicados em livro, ou estão totalmente esquecidos. Mas A Escravidão na Poesia Brasileira reúne também vários dos maiores nomes da literatura nacional de todas as épocas: Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Fagundes Varela, Castro Alves, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, entre outros.