Julho - 2021 - Edição 269

Tradição oral

O que são palavras? Raramente pensamos nelas em nosso dia a dia, envolvidos em infindáveis ações, interagindo com o mundo e nossos semelhantes. Nesse rodamoinho, as palavras são simplesmente um fato da vida. E, em verdade, elas são parte fundamental do que é unicamente humano. Sem a linguagem e seus blocos constituintes, as palavras, não haveria muito que nos diferenciasse de outros antropoides, jamais nos tornaríamos o que somos, não teríamos abandonado a selva e nos espalhado pelo globo. Palavras carregam em si bem mais que seu sentido utilitário, pois nascem no seio de uma cultura humana específica, com sua carga de historicidade, tradições e espiritualidade. Elas, portanto, podem revelar toda uma outra dimensão, se lhe dermos a devida atenção. No sentido de preservar e divulgar o vocabulário pertencente aos cultos afro-brasileiros foi que Ronaldo Rego, ao longo de décadas, reuniu diligentemente uma respeitável coleção de termos usados pelos participantes desses cultos, através de depoimentos coletados nas páginas especializadas, periódicos e outras fontes. Tais palavras, cujo significado é revelado nas páginas desse dicionário, abrem a porta para o rico universo da cultura afro-brasileira, nascida no encontro, assimilação e transformação de símbolos e tradições religiosas de nossas principais origens: europeia, africana e indígena. Dicionário das Religiões Afro-Brasileiras de Ronaldo Rego sai sob a égide de Ao Livro Técnico.

Carioquices

Na estreita faixa entre o Atlântico e a Lagoa Rodrigo de Freitas, chamada Ipanema, no Rio de Janeiro, “produziu- -se a maior quantidade de cronistas, poetas, romancistas, designers, arquitetos, cartunistas, artistas plásticos, compositores, cantores, jornalistas, fotógrafos, cineastas, dramaturgos, roteiristas, cenógrafos, figurinistas, atores, diretores de TV, modelos, estilistas de moda e esportistas de que se tem notícia no Brasil”. Por sessenta anos, essa “província de cosmopolitas” influiu decisivamente na cultura brasileira, e muitos de seus protagonistas se tornaram estrelas reconhecidas em todo o Brasil. Ela é carioca (Cia das Letras) compõe-se de 237 verbetes, abrangendo centenas de figuras que ajudaram a mudar o jeito de o brasileiro escrever, falar, se comportar, se vestir e até se despir. Narrados no estilo inconfundível de Ruy Castro, essas minibiografias se completam mutuamente e apresentam não apenas a história de cada figura, mas transportam o leitor ao fervilhante clima cultural da época. Tudo isso é Ipanema: Tom Jobim, Leila Diniz, Rubem Braga, Tônia Carrero, Millôr Fernandes, Danuza Leão, Vinicius de Moraes, Fernando Gabeira, Jô Soares, João Saldanha, Paulo Francis, Odette Lara, Glauber Rocha, Ibrahim Sued, Alair Gomes, Jaguar, Marina Colasanti, Ira Etz, Ferreira Gullar, Roniquito de Chevalier, Nelson Motta, Cazuza, Zózimo Barrozo do Amaral, Ziraldo, Zuzu Angel, e muito mais.

Extensão ou comunicação

Escrito no Chile, em 1968,Extensão ou Comunicação? é um ensaio preciso sobre a escolha metodológica dos educadores e faz a defesa de uma educação que não se reduz à capacitação técnica, mas que abrange o esforço através do qual os homens se decifrem como transformadores da realidade. Propõe uma análise sobre o trabalho do agrônomo (chamado erroneamente “extensionista”) como educador e pretende ressaltar sua indiscutível e importante tarefa junto aos camponeses (e com eles), a qual não se encontra corretamente indicada no conceito de “extensão”. O prefácio é do engenheiro agrônomo e economista agrário chileno Jacques Chonchol. Em 1963, em Angicos, interior do Rio Grande do Norte, trezentos trabalhadores rurais foram alfabetizados em apenas 40 horas, pelo método proposto por Paulo Freire. Esse foi o resultado do projeto-piloto do que seria o Programa Nacional de Alfabetização do governo de João Goulart, presidente que viria a ser deposto em março de 1964. Em outubro desse mesmo ano, Freire deixou o Brasil para proteger a própria vida. Apenas voltou a visitar o país em 1979, com a abertura democrática. Ao longo de sua história, Paulo Freire recebeu mais de cem títulos de doutor honoris causa, de diversas universidades nacionais e estrangeiras, além de inúmeros prêmios, como Educação para a Paz, da Unesco, e Ordem do Mérito Cultural, do governo brasileiro. Integra o International Adult and Continuing Education Hall of Fame e o Reading Hall of Fame. “O diálogo e a problematização não adormecem a ninguém. Conscientizam. Na dialogicidade, na problematização, educador-educando e educando-educador vão ambos desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que este conjunto de saber se encontra em interação. Saber que reflete o mundo e os homens, no mundo e com ele, explicando o mundo, mas sobretudo, tendo de justificar-se na sua transformação.”

Ir além

A poesia direta, irreverente e originalíssima de Maria Vasco se traduz neste Plou! (Editora 7 Letras), onomatopeia de multissignificados, som da semente que estoura e gera vida, som da liberdade, da luz, da ideia poética de ir sempre além. “Maria para mim é a expressão de amor à vida. Ela transborda. Escreve com total e tocante honestidade, com profundidade e sutileza incomuns. Transforma em palavras tudo que sente. Maria vive a poesia. Maria vive em poesia”, ressalta Monica Martelli. Me sentei no balaústre/ fiquei a pescar ideia/ foram tantas na cabeça de medeia/ que me vi pendurada no lustre/ colada no teto/ desabado repleto de loucura/ fartura abstrata/ que trata do imponderável/ o admirável ainda existe/ mesmo triste/ diante do que vê//. Maria Vasco nasceu em Recife, em 1944. Chega ao Rio aos 3 anos e é envolvida imediatamente pelo espírito carioca. A irreverência e o humor são traços fortes da personalidade de Maria e do Rio. Uma revolucionária de ideias que se casou com a cidade. Poeta, artista plástica, compositora e ambientalista, idealizou e coordenou o projeto de educação ambiental para a Cedae e o Governo do Estado com o apoio do Banco Mundial em 1992. Lançou seu primeiro livro, O Livro Vermelho de Maria Vasco, de poesias eróticas, pela editora Tinta Negra. Maria continua irreverente e inovadora, criando a onomatopeia Plou, que significa o som da ideia

Fora do padrão

Jarid Arraes se destaca como uma das maiores escritoras brasileiras da atualidade. Os temas de sua obra, sempre urgentes e igualmente atuais, colocam em evidência sujeitos preteridos, fora do padrão e das vistas da sociedade: “eu quero ouvir/ sobre as pequenas vidas/ os pequenos instantes/ de vida/ que ainda resistem/ aí”. Nesta antologia, a autora de Redemoinho em Dia Quente vai em busca de “uma toca/ de paredes/ grossas// um abrigo/ que cesse/ a fome”, um refúgio em meio a campo aberto. Em um denso equilíbrio entre introspecção e crítica social, estes poemas se dividem em cinco ramos – selvageria, fera, corpo aberto, caverna e poemas inéditos – e recuperam a imagem da mulher e do corpo feminino negro, que se encontra desprotegido da loucura e das inúmeras opressões cotidianas. Um Buraco com Meu Nome, reeditado agora pela Alfaguara, traz sete poemas jamais publicados pela autora, reforçando a vitalidade da obra: “existo paralela/ e por dentro/ estou faminta”, diz Jarid. Maridam Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora de Heroínas Negras Brasileiras: em 15 cordéis (Seguinte, 2020); Redemoinho em Dia Quente (Alfaguara, 2019), vencedor do prêmio APCA e do prêmio Biblioteca Nacional na categoria contos/crônicas; e As Lendas de Dandara (Editora de Cultura, 2016).

Bodas em Tipasa

Bodas em Tipasa (Editora Record) é a reunião de dois livros de Camus: Bodas e O Verão. Bodas, escrito entre 1936 e 1937, é um de seus primeiros trabalhos, e nele o autor já lida com questões que abordaria em toda sua obra – o absurdo e o suicídio. São quatro ensaios líricos com caráter autobiográfico. O primeiro, Bodas em Tipasa, texto mais famoso, se passa na cidade argelina onde, com suas ruínas romanas e o mar, “exibimos, todos, a lassidão feliz de um dia de bodas com o mundo”. Além deste, é composto também por “O vento em Djemila”, com suas ruínas, seus afloramentos rochosos, onde “reinava um silêncio pesado e compacto”; “O verão em Argel”, em que apresenta um dos grandes fundamentos de sua filosofia, pois “se há um pecado contra a vida, talvez não consista tanto em desesperar dela quanto em esperar outra vida, e se furtar à implacável grandeza desta”; e “O deserto”, sobre sua viagem à Toscana com um “deserto singular [que] só é sensível aos que são capazes de nele viver sem jamais enganar sua sede. É então, e só então, que ele se povoa das águas vivas da felicidade”. O Verão é um ensaio de Camus escrito poucos anos depois, entre 1939 e 1953. Nele o autor se debruça sobre uma viagem que parte da Argélia, do fio de Ariadne no encalço do Minotauro para evocar Orã e seus arredores, revisita o mito de Prometeu à luz da violência do mundo então e sonha com a beleza de Helena e da Grécia, que nos envolve numa viagem pelo Mediterrâneo e por seus mitos. Bodas em Tipasa é uma reunião de textos da juventude do filósofo do absurdo, que se tornaria um dos mais importantes autores do mundo no século XX, em que ele parte da própria vida para dar início a reflexões que seriam vistas em todo seu trabalho. Em suma, um livro fundamental para se entender a obra camusiana.