Maio, 2025 - Edição 306

Cacá Diegues eterno

Um dos mais respeitados intérpretes do Brasil, dotado de uma genialidade irônica e plural, o acadêmico Cacá Diegues, último ocupante da Cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras (ABL), deixou órfã uma legião de fãs no dia 14 de fevereiro deste ano. Aos 84 anos, o grande cineasta, produtor e escritor morreu devido a complicações cardiovasculares durante uma cirurgia de próstata, na Clínica São Vicente.
Alagoano que morava no Rio de Janeiro desde criança, Cacá traduziu em filmes a identidade social, política e cultural do povo brasileiro. Um dos fundadores do Cinema Novo – movimento que, entre as décadas de 1960 e 1970, ampliou os limites da linguagem cinematográfica do país – indicado três vezes à Palma de Ouro do Festival de Cannes – à qual concorreu com Bye bye Brasil (1980), Quilombo (1984) e Um trem para as estrelas (1987) – o imortal deixou um legado de 37 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens. Com filmes exibidos comercialmente em todos os continentes, participou das seleções oficiais dos mais importantes festivais internacionais de cinema, como Cannes (onde também foi membro do Júri, em 1981 e 2010), Veneza, Berlim, Toronto, Locarno, Montreal, San Sebastián e Nova York.

Entre seus filmes premiados no exterior, estão Orfeu, eleito melhor filme na Mostra de Cartagena, em 2000, e O maior amor do mundo, vencedor do Gran Prix des Amériques, em Montreal, em 2006. No Brasil, um de seus maiores fenômenos de bilheteria, Xica da Silva (1976), que anunciava a volta da alegria democrática, conquistou o troféu Candango de melhor filme e de melhor diretor no Festival de Brasília. Tieta do agreste (1996) e Deus é brasileiro (2002), adaptados de grandes obras da literatura nacional, também figuram entre os filmes de maior público. Em 1998, recebeu do governo francês o título de “Officier de l’Ordredes Arts et des Lettres” e foi agraciado com a medalha da Ordem de Mérito Cultural, outorgada pelo governo do Brasil, em 2001. Cacá Diegues tem outros nove livros publicados e, desde 2010, escrevia regularmente artigos para jornal O Globo, publicados aos domingos. Nos últimos tempos, vinha trabalhando na finalização de Deus ainda é brasileiro, continuação para o sucesso de 2003, estrelado por Antonio Fagundes e Wagner Moura, com estreia prevista ainda para 2025. A obra de Cacá Diegues equilibrou popularidade e profundidade artística, abordando temas sociais e culturais com sensibilidade ímpar.


Biografia

Batizado Carlos José Fontes Diegues, Cacá nasceu em Maceió, Alagoas, no dia 19 de maio de 1940. Filho do antropólogo Manuel Diegues Júnior (Manelito) e de Zairinha, com seis anos mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Desde criança era fã de cinema. Foi aluno do Colégio Santo Inácio e, em seguida, ingressou no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Na universidade, presidiu o Diretório Estudantil.

Ainda estudante, fundou um cineclube junto com os (também futuros) cineastas David Neves e Arnaldo Jabor. Dirigiu o jornal O Metropolitano, órgão oficial da União Metropolitana de Estudantes. Integrou o Centro Popular de Cultura, ligado à União Nacional dos Estudantes.

No início dos anos 1960, juntou-se aos jovens cineastas Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Jr, entre outros, iniciando o movimento que ficou conhecido como “Cinema Novo”, que pretendia mudar a história do cinema retratando questões sociais e políticas.

Depois de lançar Fuga e Brasília, em 1961, Cacá lançou, com a colaboração de David Neves e Affonso Beato, o curta-metragem – Domingo, um dos filmes pioneiros do Cinema Novo. Em 1962, Cacá dirigiu Escola de Samba Alegria de Viver, um dos documentários de Cinco Vezes Favela, que reuniu cinco curtas-metragens produzidos pela União Nacional de Estudantes (UNE), considerado uma das obras fundamentais para o novo movimento do cinema.

Em 1964, seu filme Ganga Zumba foi apresentado no Festival de cinema em Cannes. Nesse mesmo ano, foi instalada uma ditadura militar no Brasil para combater a revolução comunista. Participando de uma resistência intelectual e política, foi alvo da repressão por seu espírito combativo e inquieto. Seus filmes foram censurados e, em 1969, teve que sair do país. Entre 1969 e 1970, viveu na Itália e depois em Paris, em companhia da cantora Nara Leão, então sua esposa. A primeira filha do casal nasceu em Paris, em 1970.

Cacá Diegues foi casado com a cantora Nara Leão (1942- 1989) entre os anos de 1967 e 1977. O casal teve dois filhos, Isabel e Francisco. Em 1981, casou-se com a produtora e cineasta Renata Almeida Magalhães, com quem teve a filha Flora.

Em 1970, em plena ditadura, Cacá retornou ao Brasil e inaugurou um período de grande popularidade do cinema brasileiro com os filmes Quando o Carnaval Chegar (1972) e Xica da Silva, (1976), que recebeu o Prêmio Molière de Melhor Filme e Melhor Direção. Nos anos seguintes, o cineasta lançou: Chuvas de Verão (1978), Bye Bye Brasil (1979), dois de seus maiores sucessos, Quilombo (1984) e Dias Melhores Virão (1990), lançado depois do fim da ditadura que perdurou até 1985.

Em 1993, depois da promulgação da nova Lei do Audiovisual, Cacá lançou vários sucessos, tornando-se um dos cineastas brasileiros mais conhecidos no exterior. Em 2014, lançou a autobiografia Vida de Cinema – Antes, Durante e Depois do Cinema Novo, que levou seis meses para ficar pronta. Segundo ele, a obra também poderia ser considerada uma “reportagem memorialista”.

Em 2018, o cineasta lançou O Grande Circo Místico, que é uma adaptação do espetáculo musical de 1983, com trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo, baseado no poema de Jorge de Lima, sobre a paixão de um aristocrata por uma acrobata.



Tragédia pessoal

Vivendo uma tragédia pessoal desde a perda da filha caçula, em 2019 – a atriz Flora Diegues morreu aos 34 anos, em decorrência de um câncer no cérebro – o cineasta permaneceu alguns anos “sem conseguir fazer nada”, como discorreu num dos textos publicados na coluna semanal que assinava em O Globo. Flora, além de atriz, também trabalhava como roteirista e diretora. O último trabalho dela foi na novela Deus Salve o Rei.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 30 de agosto de 2018, muito aplaudido em seu discurso de posse, já alertava para os tempos de polarização e vulgaridade: “Temos sofrido um vendaval de paixões polarizadas e histéricas. Há um desejo latente de valorizar a vulgaridade e o homem dito ‘normal’, aquele que só reproduz os piores valores de nossa ignorância, sem sonhos nem fantasias, num horizonte sombrio e sem surpresas. A criação, hoje, corre o risco de se tornar prisioneira dessa consagração da platitude, onde o único valor reconhecido e respeitado é o da morte elevada a uma desimportância consagradora”, lamentou na ocasião.


Títulos e Distinções

• Conselheiro da Cinemateca Brasileira (de 2010 a 2013)
• Membro do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro (2007)
• Cavaleiro da Ordem do Mérito de Palmares (Governo de Alagoas, 2000)
• Comendador da Ordem de Rio Branco (Governo do Brasil, 2000)
• Officier de l”Order des Arts e des Lettres, (Ministério da Cultura da França, 1986)
• Membro titular da Cinemateca Francesa, desde 1970


Premiações

• Prêmio pelo Conjunto da Obra no Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, 2006
• Prêmio Vida e Trabajo pelo Conjunto da Obra no Festival da Santa Cruz de la Sierra, 2007
• Troféu Glória, Lifetime Achievement Award, Chicago, 2015
• Prix de la Celebration du Centenaire du Cinématographe, IL, Lyon, França, 1995
• Outstanding Achievemente in the Arto f Film, Denver, EUA, 1990


Filmografia

• Fuga (1959)
• Brasília (1960)
• Domingo (1961)
• Cinco Vezes Favela – Escola de Samba Alegria de Viver (1962)
• Ganga Zumba (1964)
• A Oitava Bienal (1965)
• A Grande Cidade (1966)
• Oito Universitários (1967)
• Os Herdeiros (1969)
• Receita de Futebol (1971)
• Quando o Carnaval Chegar (1972)
• Joanna Francesa (1976)
• Cinema Íris (1974)
• Aníbal Machado (1975)
• Xica da Silva (1976)
• Chuvas de Verão (1978)
• Bye Bye Brasil (1979)
• Quilombo (1984)
• Um Trem para as Estrela (1987)
• Dias Melhores Virão (1989)
• Veja Esta Canção (1994)
• Tieta do Agreste (1996)
• Orfeu (1999)
• Deus é Brasileiro (2003)
• O Maior Amor do Mundo (2007)
• Nenhum Motivo Explica a Guerra (2012)
• Rio de Fé (2013)
• O Grande Circo Místico (2018)

Por Manoela Ferrari