Janeiro, 2025 - Edição 304
O universo de Portinari em diálogo com a literatura
Durante a aplaudida palestra, foram apresentados os bastidores da criação e instalação dos monumentais painéis Guerra e Paz, na sede da ONU, em Nova York, destacando sua importância como patrimônio artístico e símbolo da aspiração humana pela paz.
O professor João Candido também abordou a primeira itinerância dos painéis, que incluiu sua restauração no Brasil e exposições em importantes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Paris, culminando com seu retorno à ONU, em 2015.
Entre os objetivos da conferência, a proposta de uma reflexão sobre a atualidade dos painéis Guerra e Paz, presente do Brasil às Nações Unidas em 1957. Segundo João Candido, a obra, que retrata a dicotomia entre a destruição e a esperança, mantém sua relevância e trágica atualidade mesmo após mais de meio século, ecoando nos conflitos e desafios contemporâneos.
João Cândido é responsável pelo Projeto Portinari – uma das mais significativas contribuições à formação cultural, estética, da juventude brasileira – cujo objetivo se aproxima muito da missão da Academia Brasileira de Letras: o respeito, a preservação e a devoção à memória de personalidades que ajudaram a construir e difundir a cultura do nosso país.
Criado em 1979, o Projeto Portinari está completando 45 anos este ano, mais da metade da vida do seu fundador e até hoje diretor- -geral, que está com 85. Dirigindo-se ao pai em carta-prefácio póstuma, que introduz a primeira publicação do Projeto Portinari, João Candido declarou: “(...) é como brasileiro que me sinto no dever de trabalhar para que todos possamos nos reencontrar com tua obra e, através dela, com nós mesmos”.
Inicialmente direcionado ao resgate sistemático, minucioso e abrangente da vida e da produção artística de Candido Portinari,assim como do contexto histórico em que ele viveu, o projeto busca, igualmente, integrar a obra do artista no serviço de um propósito mais amplo: a busca da nossa identidade cultural e a preservação da memória nacional. Da mesma forma, almeja contribuir para uma ação sociocultural abrangente, visando aprimorar a compreensão do processo histórico e cultural brasileiro. Seu acervo é resultado do levantamento e catalogação de mais de 5.200 obras e 30 mil documentos relacionando-os entre si, e com as obras. Entre esses documentos, encontram-se 6 mil correspondências, 12 mil recortes de jornais e periódicos, 2.900 fotografias de época, depoimentos, catálogos de exposições e de leilões e textos. O acesso à obra de Portinari, que está em grande parte nas mãos de colecionadores particulares, pode ser acessada através do site www.portinari.org.br.
Atualmente, o Projeto enfrenta seu maior desafio: levar os painéis Guerra e Paz, que estão na ONU em Nova Iorque, para a Itália, em maio do ano que vem, e, depois, para a COP30, em Belém do Pará. Segundo João Candido, trata-se de um antigo sonho levar Portinari para o norte do nosso país, algo que acontecerá pela primeira vez. E terminar na China, em janeiro de 2026, no Museu Nacional da China. A obra de Portinari transcende o tempo e o espaço, confrontando-nos com a realidade da guerra e a necessidade premente da paz. A palestra buscou inspirar a reflexão e a ação em prol de um futuro mais harmonioso para a humanidade.
O artista
Candido Portinari nasceu em 29 de dezembro de 1903, numa
fazenda de café, perto do pequeno povoado de Brodowski, no estado
de São Paulo. Filho de imigrantes italianos, de origem humilde, teve
uma infância pobre. Recebeu apenas a instrução primária. Desde
criança manifestou sua vocação artística. Começou a pintar aos nove
anos. E, do cafezal às Nações Unidas, ele se tornou um dos maiores
pintores do seu tempo.
O ser humano é o cerne de sua obra. Preocupado com a temática social, retratou em cores fortes e impactantes a realidade do povo
brasileiro. Mas também há um lado lírico em suas obras, que remete
às lembranças de sua infância em Brodowski – as crianças brincando
pelas ruas, os casais enamorados, os trabalhadores rurais – representando o ser humano em momentos de ternura, solidariedade e paz.
Portinari ganhou reconhecimento tanto no Brasil quanto no
exterior, por sua produção artística e seu engajamento cultural e
humanistas. Suas exposições, prêmios e honrarias, bem como o respeito que conquistou, demonstram sua importância. Ele é motivo de
orgulho para o povo brasileiro, que se vê representado em sua obra.
Durante a última década de sua vida, Portinari criou os famosos
painéis Guerra e Paz para a sede das Nações Unidas, uma obra-prima
que representa sua contribuição mais universal e profunda. Para o
filho João Candido, essa obra constitui o maior trabalho de toda a vida
do pintor: “O mais universal, o mais profundo, também, em seu majestoso diálogo entre o trágico e o lírico, entre a fúria e a ternura, entre o
drama e a poesia.”
Na avaliação do artista Enrico Bianco, as obras Guerra e Paz “são
as duas grandes páginas da emocionante comunicação que o filósofo/
pintor entrega à humanidade.”
Se pintar era um ato praticado com tanta dedicação e amor,
pode-se dizer que Portinari morreu amando. Depois de contrariar as
ordens médicas para se afastar do seu ofício, em 6 de fevereiro de 1962,
o pintor morreu devido à intoxicação causada pelos metais pesados
contidos nas tintas que usava em sua arte
Três dias após o seu funeral, Carlos Drummond de Andrade
dedicou-lhe o poema “A mão”:
Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos.
A mão cresce mais e faz
do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.
Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da terra domicílio do homem.
Entre o sonho e o cafezal
entre a guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
todos os meninos, ainda os mais desgraçados
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.
Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.
Missão do Projeto
A palestra de João Candido Portinari concluiu com a apresentação da nova jornada global dos painéis, reforçando seu papel como um
chamado universal à paz e à sustentabilidade. Em sua fala, resumiu a
missão principal do Projeto: “Ficou muito claro para nós que nossa
missão é educativa, voltada para as crianças e os jovens. Portinari
não é um pintor abstrato. Ele não propõe linhas, volumes, cores, formas. Ele propõe uma reflexão profunda sobre a ética e o humanismo.
Através de sua obra, ele passa valores de não violência, de fraternidade, de justiça social, de respeito à vida E o que mais a gente poderia
querer passar para os nossos filhos e nossos netos, nesse mundo tão
convulsionado que a gente vive, do que esses valores?”, concluiu João
Candido.