Novembro, 2024 - Edição 303

Antonio Cicero guardado para sempre

Saíram da caneta de Antonio Cicero vários sucessos do cancioneiro nacional. Versos como “você me abre seus braços/e a gente faz um país” (de “Fullgás”, uma das muitas parcerias com a irmã Marina Lima) deram ao saudoso acadêmico, poeta e filósofo, um lugar cativo no imaginário popular brasileiro.

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2017, sétimo ocupante da cadeira nº 27, na sucessão de Eduardo Portella, Antonio Cicero morreu aos 79 anos, em Zurique, na Suíça, onde estava ao lado do marido, o figurinista Marcelo Pies. Filho do economista Evaldo Correia Lima, um dos fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o carioca Cicero cresceu em ambiente intelectual, morou nos Estados Unidos com a família e descobriu a poesia ainda na infância, com a leitura do poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias.

Formou-se em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – com passagem pela Universidade de Londres, em 1969, quando sofreu o exílio durante a ditadura militar brasileira. Fez pós-graduação na Georgetown University, nos Estados Unidos, em 1976. Lá, estudou grego e latim, o que lhe permitiu ler, no original, clássicos como Homero, Píndaro, Horácio e Ovídio. Tempos depois, deu aulas de Filosofia e Lógica em universidades do Rio.

Dividido entre a filosofia e a poesia, o poeta embarcou na música popular quando sua irmã Marina, dez anos mais moça, musicou seu poema “Alma calada”, gravado por Maria Bethânia, em 1976. Desse momento em diante, passou a escrever, além de poemas para serem lidos, letras para serem cantadas. Foi parceiro de outros artistas consagrados, como Lulu Santos, Roberto Frejat, João Bosco, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Claudio Zoli e Adriana Calcanhotto.

“Tolice é viver a vida, assim, sem aventura.” Esse é um dos versos que Cicero escreveu para “O último romântico”. A canção deu nome ao álbum lançado por Lulu Santos, em 1983. Tornou-se um dos maiores sucessos do cantor e compositor, com uma letra esperançosa e, claro, romântica.

Uma das canções mais tocadas de 1984, “Fullgás” dava nome ao álbum homônimo de Marina e, até hoje, é uma de suas canções mais lembradas, com pegada new wave e letra cheia de simbolismos. É uma brincadeira com o inglês full gas e com a palavra fugaz. “Dono do pedaço”, composta em 1993, faz parte do disco “Extra”, do acadêmico Gilberto Gil. Trata-se de uma das várias letras que Antônio Cícero escreveu junto com o também poeta Wally Salomão.
A parceria com Adriana Calcanhotto na canção “Inverno” entrou no disco “Fábrica de poemas”, que a gaúcha lançou em 1994. Esta foi a segunda música feita pelos dois, que antes já haviam feito “Água Perrier”.

Entre os livros publicados, estão os com ensaios filosóficos O Mundo desde o Fim (1995), Finalidades sem Fim (2005) e Poesia e Filosofia (2012), além dos volumes de poemas Guardar (1996), A Cidade e os Livros (2002), Livro de Sombras: Pintura, cinema, poesia (2010) e Porventura (2012).

Em julho deste ano, Cicero fez sua última conferência, na Academia Brsileira de Letras: “A poesia de Antonio Cicero”, quando falou sobre sua produção poética. Seu poema mais famoso, “Guardar”, foi incluído, em 2001, na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, organizado por Italo Moriconi:



Depois de alguns anos lutando contra o Alzheimer, Cicero escolheu a morte assistida, legalizada na Suíça. Uma escolha corajosa e coerente com o sentido que via na vida. Para o presidente da ABL, Merval Pereira, Antonio Cicero é um dos maiores poetas de sua geração e a escolha da morte assistida demonstra sua fortaleza diante da vida: “Preferiu morrer a viver sem poder fazer o que mais gostava: ler, escrever, filosofar.”

Antonio Cicero deixou suas últimas letras registradas numa carta aos amigos, despedindo-se:



Produtor musical, jornalista e escritor, Nelson Motta fez um texto ressaltando as várias faces do amigo: “Mais uma dor no coração com a partida de Antonio Cicero, querido amigo e imenso poeta e letrista, um filósofo full time e fullgas, com humor e profundidade. Um baita intelectual como não se produz mais, um cara que viveu de sua cabeça e fez história com ela”, escreveu Motta.

Seus colegas de fardão também não pouparam elogios. Entre eles, a acadêmica Ana Maria Machado lamentou: “A perda de Antonio Cicero nos deixa um vazio. Raros, em qualquer cultura, conseguem conjugar o rigor intelectual de um filósofo brilhante com a sensibilidade aguçada de um poeta de primeira linha. Somese a isso a dignidade moral de um ser humano exemplar. Para não falar no carinho e saudade com que os amigos vamos lembrá-lo. Sempre aprendi muito com ele e vou sentir muita falta.” A imortal Rosiska Darcy de Oliveira reforçou o legado libertário de Cicero: “Antonio Cicero escolheu morrer como viveu Toda sua vida é um exemplo de dignidade e liberdade. Morreu dignamente exercendo sua última liberdade. Esse doce príncipe, nosso poeta tão amado, era belo demais para suportar tanto horror, perder a lembrança de si mesmo, do mundo e pessoas que tanto amou.”

O acadêmico Antonio Carlos Secchin ressaltou a falta que o colega já está fazendo: “Antonio já está fazendo falta por aqui, mas foi tudo como ele quis. Muito íntegro, ético e sempre solidário. Amparado numa vasta cultura, uma presença constante e sempre atento.”

A última aparição pública de Antonio Cicero, no Rio, foi em 30 de setembro, no lançamento de um livro do crítico literário Silviano Santiago, numa livraria em Ipanema. A ABL programara para o final do ano (dia 12 de dezembro) uma homenagem a ele com um espetáculo em que sua irmã, Marina, cantaria suas músicas. Uma homenagem, agora póstuma, que seus admiradores irão guardar na galeria de memórias afetivas.

Por Manoela Ferrari