Setembro, 2024 - Edição 302

A premiada Adélia Prado

Voz inconfundível na literatura de língua portuguesa, a escritora Adélia Prado somou, este ano, mais dois grandes reconhecimentos em sua carreira. Uma semana após conquistar o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, a mineira, de 88 anos, foi anunciada, também, como a vencedora do Prêmio Camões 2024. Atribuído, desde 1989, a autores lusófonos pelo conjunto da obra, trata-se de um dos maiores valores do mundo entre os prêmios literários, que renderá à Adélia € 100 mil (equivalente a cerca de R$ 580 mil). A premiação é concedida por meio de subsídio da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) – entidade vinculada ao Ministério da Cultura (MinC) e do Governo de Portugal.

Entre os brasileiros que já venceram o prêmio Camões estão João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Candido (1998), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), Ferreira Gullar (2010), Chico Buarque (2019) e Silviano Santiago (2022). A lista de consagrados pelo Camões inclui ainda o moçambicano Mia Couto, o angolano Pepetela, e os portugueses Agustina Bessa-Luís, José Saramago e Eduardo Lourenço. Considerada a maior poeta viva do Brasil, Adélia Luzia Prado Freitas nasceu no dia 13 de dezembro de 1935, na cidade de Divinópolis, em Minas Gerais. Sua obra retrata o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo. Escreveu seus primeiros versos aos 15 anos, quando sua mãe morreu.

Professora por formação, exerceu o magistério durante 24 anos antes de se consagrar como escritora. O reconhecimento veio aos 40 anos, com o livro de poemas Bagagem (1976). Os versos chamaram a atenção do poeta Carlos Drummond de Andrade: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”, escreveu ele, na época, em uma crônica no prestigiado Jornal do Brasil.

Entre poesia, prosa e antologias, Adélia já publicou mais de 20 livros. Os versos dessa católica fervorosa misturam religião, desejo e morte, falando sobre as angústias das mulheres da família que gostam de sexo e temem a Deus. Costuma colocar a perspectiva da mulher em seus poemas, destacando sempre o feminino em primeiro plano. É conhecida por retratar o cotidiano sob o olhar feminino e não feminista e libertário.

Em 1978, ela escreveu O Coração Disparado, com o qual conquistou o Prêmio Jabuti de Literatura, conferido pela Câmara Brasileira do Livro. Sua estreia em prosa se deu no ano seguinte, com Solte os Cachorros. Em seguida, publicou Cacos para um Vitral. Em 1981, lançou Terra de Santa Cruz e, em 1984, Os Componentes da Banda. Em 1991, foi publicada sua Poesia Reunida.
Em 1987, a consagrada acadêmica Fernanda Montenegro estreou, no Teatro Delfim (Rio de Janeiro), o espetáculo Dona Doida: um interlúdio, baseado em textos de livros da autora. A montagem, sob a direção de Naum Alves de Souza, fez enorme sucesso, tendo sido apresentada em diversos estados brasileiros e, também, nos EUA, Itália e Portugal.

Em 1994, após anos de silêncio poético, ressurgiu com o livro O Homem da Mão Seca. Em 1999, foram lançados Manuscritos de Felipa, Oráculos de Maio e sua Prosa Reunida. Adélia já foi indicada para a Academia Brasileira de Letras. Em 2001, um grupo de intelectuais formou um movimento, lançando o nome dela para a vaga deixada por Jorge Amado. Mas, na ocasião, a viúva do escritor baiano, Zélia Gattai, acabou sendo eleita.

Em 2017, Adélia Prado foi a primeira mulher premiada na categoria Conjunto da Obra, pela contribuição à literatura brasileira, no concurso Literatura do Governo de Minas. Em 2024, tornou- -se a terceira escritora brasileira (e primeira escritora mineira) a vencer o prêmio Camões em 35 anos.


Novo livro e atuação nas redes>

A premiada mineira está há mais de dez anos sem publicar – sua última coletânea de poesia foi Miserere, de 2013. A poeta, porém, vai lançar um novo livro de inéditas: Jardim das Oliveiras sai com o selo da editora Record.

“Foi um livro difícil de escrever porque as experiências que produziram os poemas também foram difíceis”, contou Adélia, em um depoimento nas redes sociais. “Mas tem alegria, também. Se for poesia verdadeira, não tem um que não tem alegria, pelo menos uma sombra de alegria, uma pisada na areia, uma pegada. A arte é assim, o pintor pinta um assassinato e você quer colocar na parede.”

A autora também tem emocionado os seus admiradores com leituras de seus poemas em seu perfil do Instagram. Postado no fim do ano passado, seu primeiro vídeo teve mais de 30 mil interações. Adélia disse ter ficado “assustada e emocionada” com a repercussão.



Homenagem na ABL

No evento comemorativo do 127º aniversário da ABL, a autora foi homenageada com a entrega do Prêmio Machado de Assis. O ator Tony Ramos foi convidado para ler alguns de seus poemas.
Adélia Prado é a 11ª mulher a receber a premiação, que atualmente tem o valor de R$ 100 mil. A poetisa não pode receber pessoalmente o prêmio, mas enviou um presente para a ABL: um lindo poema, lido por sua filha, Ana Prado, na cerimônia: “Queridos amigos, família, acadêmicos, todos que amam a poesia.

Pensando em como expressar minha gratidão pela honraria que a Academia Brasileira de Letras me concede, o Prêmio Machado de Assis, lembrei-me das palavras inspiradas do poeta polonês Czeslaw Milosz: Em sua essência, a poesia é algo horrível: nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós, e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre, e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris. Essa terrível imagem nos suspende e nos obriga, de modo gozoso e novo, a uma rendição ao maravilhoso fenômeno da poesia. Ela não é enredo, não é tema, não é comentário, não tem gênero, fraterna, solidária. Qualquer coisa é a casa da poesia. Ela alimenta. Mora onde lhe apraz.

É uma experiência religiosa – o impacto da leitura de um texto sagrado, um olhar amoroso sobre você, ou olhar formigas trabalhando. O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isso é o sagrado. É Deus. É Seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. A única via para a realidade chama tudo e todos a um centro humano divino. É comunhão.
Nesta noite, estamos em comunhão, congregados pela poesia. Assim, quero encerrar minha fala oferecendo a vocês o que tenho de melhor: um poema.”


MISERERE

Eu desenhava no papel de seda uma flor de cinco pétalas quando me ocorreu a vingança contra os donos do mundo.
Tentando versos com que vos narrar minha trama, adormeci sentada, o queixo desabado no peito.
Coitada, diríeis, é aquela que vimos esbravejar no seminário?
Cismei que adoecia e procurei o médico.
Ele não foi perspicaz.
Auscultou, profissional, minhas cavidades e prescreveu ginástica, redução de calorias, vida calma.
Doía tudo. Aqui dói, doutor, aqui também.
É certo que o senhor nunca deglutiu pedras, mas, afianço-lhe, mesmo a água que bebo é indigesta coisa sólida no meu bucho.
Ele precaveu-se, intimidado pela minha fluência, pelo manuseio intimorato que dispenso às palavras.
Dependendo da atividade intelectual, da sensibilidade de cada um, tais sintomas ocorrem, minha senhora.
E mostrou as garras, defensivo, mais uns grãos de enfado.
Eu não estava doente. E estava muito.
O medo de morrer, habitualmente grande, trinta vezes aumentado.
Comecei a rezar no registro dos náufragos:
Perdoa-me, Senhor. Lembra-Te de que és meu Pai.
Como gostaria de nascer de novo e começar tudo generosamente.
Olha pelos filhos que deixarei, por meu marido que talvez não se case mais.
Onde achará, neste lugar pequeno, outra mulher que lhe ofereça tantos motivos pra mortificar-se?
Passeava na casa, amargando a saudade prévia dos seus cantos.
Doía tudo, até que, até que nada, não dói mais.
Recolhi-me ao corriqueiro estatuto de comer, dormir, lavar-me, recuperado o saudável desejo de que se fodam bem determinadas pessoas em suas empresas.
Continuo passando a língua no molar obturado, desgostosa, porque se não sou eu a cuidar da cozinha, uma lata de óleo é a conta de dois dias.
Confesso-vos: quando comecei a escrever, o que eu queria era fazer um teatro.
Fostes salvos do sacrifício de uma opinião por este grito que me interrompeu: acode aqui, dona Wíllia, o seu cachorro deu convulução!
Judith entrou de noite no acampamento inimigo e decapitou Holofernes.
Pergunto-vos, sem que nos ouçam os fracos e os ímpios: poderia eu também?
Não durmo porque nada se exaure, requerendo atenção, matança, oferta de comida, futuros de paz, empregos; e eu tenho um corpo talhado para prazeres só e guerra. Posso?
Comer? Dormir? Gostar de homens?
Louvar-Vos — em perfeita alegria — neste tempo cinzento e pegajoso?
Não é possível conseguir a atenção de uma cidade inteira — há misteres inadiáveis nos banheiros, nas casas com menino pequeno — nem silêncio. Há os aparelhos eletrônicos e as línguas compridas.
Mas duzentas pessoas numa sala, com olhos fixos na cena, verão que a vida é doida, doida, que o ser humano até hoje está sem calças, que Deus é bom e duro.
Que Jesus Cristo quando ri alucina as pessoas e atrai a todos quando diz: AMAI-VOS. Eu estou apaixonada. Ó meu Deus, me ajuda a escrever um drama.
Muito obrigada.”

ADÉLIA PRADO

Por Manoela Ferrari