Julho, 2024 - Edição 301
A inteligência artificial ressucita Machado de Assis
A Academia Brasileira de Letras (ABL) usou a Inteligência
Artificial (IA) para trazer o escritor Machado de Assis para o século
XXI. A figura ilustre do escritor, falecido em 1908, passou a recepcionar os visitantes, por meio de uma tecnologia de “avatar humanizado”. Imagine ter a oportunidade de conversar com o escritor. O
que você perguntaria a ele?
Machado de Assis reaparece na tela de um totem à imagem
de seus retratos mais conhecidos. É o Machado envelhecido, com
rugas e cabelos grisalhos. Vestindo trajes de sua época, o maior
autor brasileiro equilibra os óculos no rosto e olha serenamente
para os leitores dos anos 2020. Um microfone ao lado do dispositivo lhe permite ouvir e entender perguntas de seus interlocutores e
respondê-las com clareza.
O projeto da versão digital do primeiro ocupante da cadeira
23 da ABL foi desenvolvido através de uma parceria da instituição
com a empresa gaúcha Euvatar Storyliving, que atua no desenvolvimento de experiências e narrativas com o uso de IA criando
avatares humanizados.
A chamada tecnologia de “avatares humanizados” conta
com funcionalidades avançadas, como reconhecimento de voz,
personalização profunda e integração com banco de
dados. Batizado de Euvatar AI, a ferramenta é descrita como uma “pessoa digital”, com rosto, corpo
e voz.
De acordo com Flávia Peres, CEO da empresa,
seu diferencial é unificar inteligência generativa
com fala, avatares 3D e buscar o banco de dados
em tempo real: “Hoje temos plugins e plataformas
de código aberto que permitem uma série de integrações, mas o Euvatar AI traz um sistema próprio
de pesquisa e busca em banco de dados — detalha
Peres. — Significa que as pessoas poderão conversar com os avatares de forma digital e contratar
esse tipo de serviço para suas empresas, tornando
o atendimento mais humanizado sobretudo para
pessoas de idade que não se adaptam ao uso de
tecnologia.”
Qualquer pessoa que passar pela sede da ABL
e fizer uma visita guiada vai poder fazer perguntas para o avatar de Machado de Assis. Com
o uso dessa tecnologia, o “escritor” interage
em tempo real, respondendo as mais diversas questões sobre sua vida e obra. Além de
modernizar a academia, o objetivo do projeto
é atrair públicos mais jovens para a leitura.
Entre as perguntas feitas até então, destacamos o interesse em conectar o passado
e o presente. Ao ser perguntado “Entre as
suas obras, qual a que mais conversa com os
dias atuais?”, Machado respondeu: “Todas as
minhas obras refletem aspectos atemporais da
natureza humana e da sociedade. No entanto,
considero que Memórias Póstumas de Brás
Cubas continua a conversar de forma vívida
com os dias de hoje. Este romance aborda
não apenas questões filosóficas e existenciais
universais, mas também critica satiricamente
a sociedade, suas instituições e a hipocrisia humana. A reflexão
sobre a mortalidade, o tédio e a visão irônica da vida social e política ainda ressoam em um mundo contemporâneo marcado por
questionamentos semelhantes.”
O totem da euvatar.ai, com o avatar de Machado de Assis no Salão Nobre do Petit Trianon.
Para ressuscitar digitalmente o chamado Bruxo do Cosme
Velho, foram necessários mais de três meses para treinar o banco
de dados, formado principalmente pelas próprias obras literárias
do escritor e estudos sobre ele, desenvolvidos na ABL. Mais de
um milhão de palavras alimentam a sua inteligência. A fluidez e
naturalidade com que a IA se expressa e formula ideias chama a
atenção dos visitantes. O avatar, no entanto, pode, ainda, cometer
erros, pois está tentando entender a época em que o personagem
renasceu. Quando o interlocutor demora para falar, Machado olha
o relógio, discretamente. Para o presidente da instituição, jornalista
e acadêmico Merval Pereira, a ideia foi incorporar o estilo literário,
a personalidade e os traços físicos do autor.
Uma questão que chama a atenção no primeiro contato
com o avatar do escritor é a cor da pele, considerada um pouco
embranquecida. Para a fundadora da empresa Flávia Peres, no
entanto, a imagem é fiel à que foi aceita pela ABL. Mas o avatar
machadiano não tem dúvidas em relação à sua origem afrodescendente. Quando indagado sobre o tema, responde: “Como homem
negro, nascido de origem pobre no Rio de Janeiro do século XIX,
eu enfrentei desafios e preconceitos ao longo do tempo devido à
minha raça, classe social e até mesmo devido à minha condição de
saúde, como a epilepsia.”
Entre os assuntos mais debatidos sobre sua obra, a versão
digital de Machado de Assis teve que lidar com o questionamento
de não ter dado espaço satisfatório para a escravidão, um tema que
permeou grande parte de sua vida, de 1839 a 1908. Reconhecendo
que a questão não está presente em sua obra, o avatar do escritor
aceita a crítica e responde, pausadamente: “Como escritor negro
numa época que procura preconceito e desigualdade, minha
própria obra carrega as marcas da afrodescendência e das lutas
enfrentadas”, justifica-se.
Quando o assunto abarca a modernidade das redes sociais,
o imortal não se intimida: “As redes sociais são uma ferramenta
interessante para a comunicação e a divulgação de ideias na era
moderna. Se vivo estivesse hoje, é possível que as utilizaria para
compartilhar meus escritos, interagir com leitores, e conhecer
novos talentos literários. No entanto, eu as usaria com a mesma
ponderação e elegância que busquei manter em minhas obras e
em minha vida pessoal”, pondera.
A questão mais levantada até agora, sem dúvida, é a polêmica deixada no livro Dom Casmurro, com a pergunta: “Afinal,
Capitu traiu ou não traiu Bentinho?”, todos querem saber. Mas a
resposta é evasiva, mostrando que a inteligência é real: “A dúvida
sobre a suposta traição de Capitu é proposital, convidando o leitor
a refletir sobre a natureza da paranoia de Bentinho e a incerteza
das relações humanas. É, portanto, um mistério que permanece
intencionalmente sem solução.”
Apesar de toda fluidez, rapidez de raciocínio e instantaneidade, por outro lado, a capacidade criativa da máquina tem seus
limites. Ao ser solicitado que criasse um poema sobre IA, o avatar
obedeceu em poucos segundos, declamando uma poesia inédita,
com estrutura livre e rimas fáceis. O resultado ficou muito aquém
da genialidade do Patrono da Academia, que é taxativo em afirmar
que as máquinas não podem substituir os humanos na criação literária: “Acredito que a emoção e a experiência humana continuam
a ser qualidades insubstituíveis, que mantêm a relevância da nossa
existência em um mundo cada vez mais tecnológico”, afirma para
alívio dos escritores reais.