Maio, 2024 - Edição 300
Posse histórica na ABL
A movimentação de cocares com diversas cores e tamanhos no Petit Trianon deixava claro que seria uma noite diferente de toda as posses anteriores na Instituição, fundada em 1897. Quando Ailton Krenak saiu do clausuro protocolar de 15 minutos no Salão Francês, indígenas dos povos Guajajara, Pataxó, Xavante, Tupinambá, entre outros, agitaram seus maracás e começaram a cantar e dançar no chão de mármore, sob o lustre de cristais.
Líder espiritual da etnia Krenak, do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, autor de livros como Ideias para Adiar o Fim do Mundo e A Vida Não é Útil, o pensador e ambientalista vestia o fardão dos imortais da Casa de Machado, mas trazia na cabeça a tradicional bandana com grafismos do povo Huni Kuin, do Acre. O novo imortal foi recebido por uivos de celebração em meio a um alegre cântico guajajara de boas-vindas, entoado pelo grupo multiétnico da Aldeia Maracanã, na Zona Norte do Rio.
O menu da noite foi produzido pelo buffet Terra Come, que veio de Belo Horizonte para homenagear o conterrâneo. Muitas “mineirices” encantaram os paladares, mas a maior atração foram as iguarias indígenas: batata doce roxa envolta numa camada de argila, assada no forno, quebrada com martelo e comida com as mãos, além de sopas com especiarias. “Batata doce é um presente da terra, é chamada o pão da terra”, explicou Silvia Herval, do Terra Come, acrescentando: “Na argila, está carimbada a palavra KRENAK. O “Kre” significa “cabeça” e o “Nak”, terra. Então, quebramos a palavra antes de comer o “pão da terra”.
Ailton Krenak foi eleito por 23 votos, superando a historiadora Mary
Del Priore e o indígena Daniel Munduruku. Passa a ocupar a Cadeira 5,
vaga com a morte de José Murilo de Carvalho, em agosto de 2023. A acadêmica Heloísa Teixeira recebeu o pensador indígena, saudando: “Ele traz
consigo cerca de 180 línguas para a Academia, cuja missão é a preservação e desenvolvimento de uma única língua: a portuguesa.” A entrega da
espada foi feita pelo acadêmico Arnaldo Niskier. O diploma foi entregue
por Antonio Carlos Secchin. A comissão de entrada foi formada por Edmar
Lisboa Bacha, Joaquim Falcão e Ruy Castro e, de saída, por Ana Maria
Machado, Geraldo Carneiro e Antônio Torres.
Fugindo do padrão das solenidades de posse, driblando os protocolos, improvisou boa parte do seu discurso, arrancando aplausos da plateia.
Apesar de trazer consigo um texto escrito com ajuda do poeta Antônio
Carlos Sechin para lembrá-lo de falar sobre os seus antecessores na ABL,
fez o discurso quase todo de improviso, algo inédito nas tradicionalmente
formais cerimônias de posse da Academia. Não se poderia esperar menos
do homem que, em 1987, aos 34 anos, besuntou o rosto com tinta de jenipapo em plena tribuna da Assembleia Constituinte, enquanto defendia,
no Parlamento, o direito à existência dos povos da floresta. A cena, que
entrou para a história da redemocratização, foi exibida no telão quando a
escritora Heloísa Teixeira apresentou o novo imortal no Salão Nobre.
Ao romper com o protocolo dos discursos lidos, o mineiro de
Itabirinha foi coerente com a tradição da oralidade do seu povo. Krenak
não escreveu nenhum livro publicado com seu nome na capa. Todos
foram redigidos com base em palestras, ou em entrevistas, realizadas da
mesma forma que se viu na ABL. Ativista desde os anos 1980, o jornalista
visita aldeias e cidades do país para falar em conferências, debates, cerimônias e afins. Ele se apoia no saber indígena para fazer críticas ferozes
ao consumismo e à destruição do planeta. Nunca leva um texto pronto.
O advogado Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos
Povos Indígenas, explicou: “Faz parte da nossa cultura da oralidade, a
gente sente a reação das pessoas e compõe o discurso no momento. Ailton
não estava falando sozinho naquela tribuna, tinha a força de todos os
ancestrais.”
Na ABL, Krenak abordou frontalmente questões como direitos dos
povos originários, dos afrodescendentes e das mulheres. Tocou em feridas
abertas ao povo da floresta no decorrer dos séculos, criticou o passado
escravocrata brasileiro, condenou o bombardeio israelense na Faixa de
Gaza e alfinetou, inclusive, a própria ABL, por apenas recentemente se
abrir para a diversidade em seus quadros.
Krenak usou a ideia do “rito” para falar sobre convivência, comunhão e a constituição de comunidades humanas: “O rito é uma das
maneiras de a gente instituir mundos. A ideia de ordem e de caos deve
estar muito relacionada com a nossa capacidade de produzir sentidos, e a
produção de sentidos é um rito, uma reza, uma oração. É uma procissão
como diz o querido Gilberto Gil, mestre Gil. É essa ritualização da vida que
nos dá potência para ir além da nossa rotina de reproduzir cotidianos”,
afirmou.
A promotora de eventos Julia Xavante, da Aldeia Maracanã, zona
norte do Rio, estava emocionada no final da cerimônia: “Viemos dar apoio.
O Ailton não está sozinho lá na frente. São 305 povos no Brasil dando respaldo. Só no Rio existem mais de 10 mil indígenas, mas se a gente não usa
penas na cabeça, ninguém nos enxerga. Nunca tínhamos pisado na ABL,
mas hoje estamos aqui, aldeando esta casa”, afirmou.
O colega de fardão Gilberto Gil elogiou a eleição do indígena: “A
casa mostra que se dispõe, finalmente, a receber a pluralidade brasileira.
Ailton representa isso de forma cintilante. Ele tem um gosto verdadeiro
pela palavra. É um lavrador de palavras. Um palavrador.”
Uma das intenções do novo imortal é convidar a ABL para criar
uma plataforma que tenha uma experiência parecida com a da “Biblioteca
Ailton Krenak”, disponível para quem deseja ter acesso a centenas de imagens, textos, filmes e documentos.
Biografia
Jornalista de formação, Ailton Krenak é sobrevivente do massacre
sofrido pelos krenaks desde o contato com o homem branco, no século
XVI. Expulsos de suas terras e quase dizimados, eles ocupam hoje uma
área restrita no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Foi ali que o ambientalista nasceu, em 1953.
Ambientalista, filósofo, poeta, escritor e doutor honoris causa
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), tem vários livros publicados. Ocupante da
cadeira 24 da Academia Mineira de Letras, sua obra está traduzida para
mais de treze países.
Em 2020, conquistou o Prêmio Juca Pato de “Intelectual do Ano”,
concedido pela União Brasileira dos Escritores (UBE). Em dezembro
de 2021, a Universidade de Brasília também lhe concedeu o título de
Professor Doutor Honoris Causa.
Como liderança histórica no movimento indígena, exerce um papel
crucial. Ativista do movimento socioambiental, participou da fundação
da Aliança dos Povos da Floresta e da União das Nações Indígenas (UNI).
Na Assembleia Constituinte de 1987, da qual participou por causa de uma
emenda popular, assumiu ativo papel na defesa dos direitos de seu povo.
Atualmente vive na Reserva Indígena Krenak, no município de
Resplendor, no estado de Minas Gerais.
O sucesso de seus livros mais recentes, como A Vida Não é Útil e
Ideias para Adiar o Fim do Mundo, ambos publicados pela Companhia
das Letras, difundiu o pensamento ameríndio para o grande público,
propondo novos modos de vida e maneiras de se relacionar com o meio
ambiente. Krenak critica o que ele chama de “humanidade zumbi”, uma
ideia de progresso que deslocou os homens do corpo da terra e nos levou
ao consumo desenfreado e à destruição da natureza: “Quando eu falava há
uns 10 anos, com exceção dos antropólogos, ninguém entendia o que eu
estava falando. Achavam que eu via filme de ficção-científica demais. Mas
as mudanças climáticas estão aí, elas vão matar todo mundo, inclusive os
imortais.”
O novo acadêmico vai sugerir à instituição a criação de uma plataforma colaborativa sobre estudos a respeito das línguas nativas no Brasil.
Será uma forma de ampliar o acesso de quem está mais distante dos grandes centros urbanos, caso de populações indígenas.