Janeiro, 2023 - Edição 287
Nélida, saudade imortal
Plural no talento. Singular na genialidade. Poucas pessoas nascem
com excelência na multiplicidade com a envergadura da imortal Nélida
Piñon, que deixou órfão um legado de admiradores com a sua morte,
ocorrida em Lisboa, no dia 17 de dezembro de 2022. Um dos maiores
nomes da literatura brasileira, Nélida passou mal, com problemas nas
vias biliares, e foi operada de emergência. Com um pós-operatório
complicado, não resistiu.
Mundialmente reconhecida pelo trabalho literário, Nélida viajou para uma temporada em Portugal, em setembro de 2022. Em
Lisboa, participou das comemorações do centenário de José Saramago
como jurada do prêmio que leva o nome do escritor e que é um dos
mais importantes da literatura de língua portuguesa. Depois, foi à
Galícia, terra natal dos pais e avós, fez uma conferência em Santiago
de Compostela, além de visitar Barcelona. Às vésperas de retornar ao
Brasil, foi internada.
A carioca Nélida Piñon era neta de imigrantes espanhóis e mantinha um vínculo de amor e gratidão com os seus antepassados. Filha
única de Lino Piñón Muíños e Olivia Carmen Cuíñas Morgado, de origem galega, seu nome é um anagrama do prenome de seu avô materno
Daniel Cuiñas. Na infância, seus pais a estimularam a ler, deram-lhe
livros e levaram-na a viajar. Aos dez anos, foi para a terra dos pais, onde
ficou dois anos. Essa vivência se refletiu em sua obra, que fala do amor
por duas pátrias: a Galícia e o Brasil.
Nascida em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, no dia 3 de maio de
1937, ainda criança, Nélida montou sua biblioteca. Escrevia histórias
em folhas avulsas e costurava-as, montando “livros” que guardava
carinhosamente na estante. Quando ela fez 12 anos, seu pai abriu uma
conta na livraria Freitas Bastos, no Largo da Carioca. Toda a semana, ela
ia de Vila Isabel até o Centro do Rio para escolher um livro.
Formada em Jornalismo pela Faculdade de Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica (PUC) do Rio, trabalhou como colunista do
jornal O Dia e exerceu cargos nos conselhos consultivos de entidades
culturais da cidade.
Seu primeiro romance foi publicado em 1961, Guia-mapa de
Gabriel Arcanjo, que trata do tema do pecado, do perdão e da relação
dos mortais com Deus através do diálogo entre a protagonista e seu
anjo da guarda.
Desde o início de sua carreira, buscou a renovação formal da linguagem. No romance Fundador, publicado em 1969, abandonou a base
realista e pôs em cena personagens históricos e ficcionais, criando um
mundo eminentemente estético. Em 1972, publicou A casa da Paixão,
romance em que abordou o tema do desejo e da iniciação sexual, considerado um de seus melhores e mais conhecidos romances, vencedor
do Prêmio Mário de Andrade.
Em 1984, lançou o romance autobiográfico A República dos
Sonhos, narrando a saga de uma família enraizada na Galícia que emigra para o Brasil. Em A Doce Canção de Caetana, romance de denúncia política de 1987, fez uma incursão ao universo de uma cidade do
interior, Trindade, à época do milagre brasileiro. Já no livro O Pão de
Cada Dia, de 1994, Nélida deixou de lado a moderna ficção na qual se
consagrou e empreendeu uma reflexão profunda sobre as inquietações
do homem, através de fragmentos que exprimem emoções, ideias e
pensamentos.
Com mais de 20 livros publicados, suas obras foram traduzidas
em mais de 30 países. Entre eles, romances, contos, ensaios, discursos,
crônicas e memórias. Segundo o site da ABL, ela foi a primeira mulher
no mundo a presidir uma academia de letras. Ocupante da Cadeira
nº 30, primeira mulher a presidir a entidade em 100 anos (entre 1996
e 1997), Nélida deu seus primeiros passos na Academia Brasileira de
Letras em 27 de julho de 1989, quando foi eleita para a cadeira que
tem por patrono Pardal Mallet, e da qual foi a quinta ocupante. Tomou
posse em 3 de maio de 1990, recebida por Lêdo Ivo.
Prêmios, nacionais e internacionais, nunca faltaram na carreira
da imortal, que colaborou em diversas publicações literárias e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris. Entre as premiações, estão o Prêmio Internacional Juan Rulfo de Literatura LatinoAmericana e do Caribe, em 1995 (primeira vez dado a uma mulher e
para um autor de língua portuguesa); o Bienal Nestlé, categoria romance, pelo conjunto da obra, em 1991, e o da APCA e o Prêmio Ficção Pen
Clube, ambos em 1985, pelo romance A República dos Sonhos.
A imortal foi titular da Cátedra Henry King Stanford em
Humanidades, da Universidade de Miami, no período de 1990 a 2003
(ocupada anteriormente por Isaac Baschevis Singer, prêmio Nobel de
Literatura de 1978).
Em 1998, foi primeira mulher a receber o Doutor Honoris Causa
da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, 1998. Nélida
tinha também a nacionalidade espanhola, país pelo qual sempre teve
grande proximidade, por causa dos avós galegos.
Para Nélida Piñon, a esperança era uma “espécie de hábito”. “É
preciso ter esperança para seguir arfando: O arfar humano é impulsionado por esse gesto de sobrevivência. Temos que ter a esperança de que
vamos dormir, comer, falar, pensar, senão, a morte vem”, defendeu, ao
falar sobre o relançamento de A República dos Sonhos, em 2015. A esperança, ela desenhava com a linguagem em romances que contavam
sagas e em ensaios que investigavam a memória e a própria existência.
Em relação à vida pessoal, Nélida dizia apreciar a solidão. Uma de
suas grandes diversões era passear com seus cachorros, a pinscher Suzy
Piñon e a chihuahua Pilara Piñon: “Adoro a solidão quando a quero.
Não é a solidão de quem padece do repúdio alheio, sou uma mulher
das amizades. Tive tempo de ser uma pessoa mundana, no sentido da
vida social, dos amigos, dos jantares, das viagens... mas como escritora,
preciso ficar sozinha, e fico.”
Nélida Piñon foi vencedora do Prêmio Jabuti duas vezes, em 2005,
com Vozes do Deserto, que ganhou nas categorias de melhor romance
e de livro do ano de ficção. Nele, a escritora recriou a história das Mil e
Uma Noites e pôs Scherezade no papel de mulher transgressora a romper as amarras de uma sociedade patriarcal.
Em seu último livro, Um Dia Chegarei a Sagres, lançado em 2021,
após 14 anos sem publicar um romance, Nélida não se furtou a abordar
a tensão sexual que aflora entre dois personagens masculinos. Ela que
ria fazer um romance total. Um romance no qual os leitores “entendessem a gênese narrativa das Américas, de onde nós procedemos, quem
somos nós”. Gravetinho, o cãozinho do qual não se separava, morreu
em 2017. Na época, decidiu passar um ano em Portugal, para escrever
a obra.
No final de 2021, generosamente, Nélida doou ao Instituto
Cervantes do Rio quase todo o seu acervo, com 8 mil livros. A Biblioteca
Nélida Piñon forma um painel da literatura mundial, especialmente hispano-americana e brasileira, e inclui prateleiras dedicadas às
“obsessões perenes” da autora, como a Idade Média, o velho oeste
mítico de Karl May, religião, ópera, balé e a Galícia. Estão incluídos
na doação, o acervo particular herdado da lexicógrafa Elza Tavares,
clássicos franceses e ingleses e muitas obras de autores de língua espanhola e portuguesa. Próxima de muitos escritores, Nélida angariou
livros com dedicatórias de autores brasileiros como Clarice Lispector,
Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e
Lygia Fagundes Telles. Também lhe deram autógrafos amigos como o
português José Saramago, o peruano Mario Vargas Llosa, o mexicano
Carlos Fuentes, o colombiano Gabriel García Márquez e a americana
Toni Morrison.
Além dos romances, Nélida também escreveu livros de contos e
ensaios com reflexões e memórias. Uma Furtiva Lágrima, publicado
em 2019, revisita a própria história e revela a visão da autora sobre sua
trajetória e sobre a literatura. Na abertura do livro, o artigo “Sou múltipla”, amplifica a sua potência:
“Não ando sozinha pelo mundo. Ao ser múltipla, sou muitas.
Minha linguagem reverbera, tenho a memória de todos na minha psique. E o coletivo passa a me afetar, aloja-se na minha primeira pessoa,
que é uma experiência dramática. Ao mesmo tempo, é bom saber que
estamos sós no mundo, não nascemos de uma ninhada. Cumpro uma
variedade de acordos ao narrar a minha história, enquanto conto com
o enredo de todos. E reverencio aqueles com quem compartilho vida.”
É nesse mesmo tom que Os Rostos que Tenho, entregue em 2022 à
Editora Record, aguarda revisão. O livro deve ser lançado este ano.
Nélida Piñon foi sepultada no mausoléu da ABL no Cemitério São
João Batista, onde já repousa a sua mãe. A Casa de Machado fará uma
Sessão da Saudade, no dia 02 de março de 2023, no Salão Nobre, em
homenagem à autora.
Ética, honradez, inteligência, competência, na mesma medida
do olhar generoso para com os seus semelhantes, Nélida ultrapassou a
estética da arte narrativa com audácia e lirismo que se eternizam através da sua obra. Majestade da linguagem, a saudosa escritora deixa um
legado incomparável na literatura.
Frases de Nélida Piñon
“Não aceito o conceito de que utopia é manejada pelos poderosos, grandes sonhadores, intelectuais. Acredito que cada qual tem o direito ao sonho modesto, pobre, que é uma utopia pessoal. Sempre achei que a imigração é um movimento utópico”.
“O Brasil é um país abandonado à sua miséria. É que o povo é muito generoso, tem uma alegria natural, ri até sem motivo, mas ri. Canta, dança, tem movimentos estéticos fantásticos.”
“Os animais, cada dia mais, ocupam um espaço poderoso na minha vida. Porque o tratamento que lhes é dado revela a precariedade da moral humana. Enquanto nós somos cruéis e carrascos em relação aos animais.”
“Deus é uma resposta individual, cada qual estabelece uma aliança com Deus. Sou uma mulher de fé, mas nunca aceitei Deus como justiceiro, como alguém que subordinou minha consciência à vontade dele.”
“Ao longo da minha formação, eu entendia que a literatura tem uma voz, parte de algum lugar, de uma geografia, mas não uma geografia circunscrita aos limites geográficos, de uma geografia que tem seus mitos, sua trajetória, sua língua, sua formação.”