Julho, 2022 - Edição 281

O pioneirismo brilhante de Nise da Silveira

Reconhecida mundialmente por sua contribuição à Psiquiatria, a ilustre médica brasileira Nise da Silveira revolucionou o tratamento mental no Brasil.
Dedicou sua vida ao trabalho com doentes mentais, manifestando-se radicalmente contra as formas que julgava serem agressivas em tratamentos de sua época, tais como o confinamento em hospitais psiquiátricos, eletrochoque, insulinoterapia e lobotomia.
Pioneira ao enxergar o valor terapêutico da interação de pacientes com animais, Nise Magalhães da Silveira nasceu no dia 15 de fevereiro de 1905 em Maceió, Estado de Alagoas. Filha do professor de matemática Faustino Magalhães da Silveira e da pianista Maria Lídia da Silveira, sempre foi bastante estudiosa. Sua formação básica se deu num colégio de freiras (o Santíssimo Sacramento, localizado em Maceió, na época exclusivo para meninas). Seu pai, também jornalista, foi diretor do Jornal de Alagoas.

Única mulher entre os 157 homens da turma de 1921 a 1926, da Faculdade de Medicina da Bahia, está entre as primeiras mulheres no Brasil a se formar em Medicina. Casou-se, nessa época, com seu colega de turma, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, com quem viveu até o falecimento dele, em 1986. O casal não teve filhos. Por um acordo entre ambos, dedicaram-se intensamente à carreira médica.
Em 1927, mudaram-se para o Rio de Janeiro. Na então capital do Brasil, Nise se engajou no meio literário, voltado para área médica, com diversas publicações dos avanços da medicina.
Em 1933, cursando os anos finais da especialização em psiquiatria, estagiou na clínica neurológica de Antônio Austregésilo. Logo após terminar sua especialização, foi aprovada, no mesmo ano, em um concurso de psiquiatria. Começou, então, a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha. Nos anos 1930, militou no Partido Comunista Brasileiro. Foi uma das poucas mulheres a assinar o “Manifesto dos trabalhadores intelectuais ao povo brasileiro”.

Durante a Intentona Comunista, foi denunciada pela posse de livros marxistas. A denúncia levou à sua prisão, em 1936, no presídio Frei Caneca, por 18 meses. Nesse período, conheceu Graciliano Ramos (que também estava preso), tornando-se uma das personagens do seu livro Memórias do Cárcere.
De 1936 a 1944, permaneceu afastada do serviço público por razões políticas. Durante seu afastamento, fez uma profunda leitura reflexiva das obras de Spinoza, material publicado em seu livro Cartas a Spinoza (1995).

Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro


Em 1944, reintegrada ao serviço público, iniciou seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, onde retomou a luta contra as técnicas psiquiátricas que considerava agressivas aos pacientes. Por sua discordância com os métodos adotados nas enfermarias, recusando-se a aplicar eletrochoques em pacientes, foi transferida para o trabalho com terapia ocupacional, atividade então menosprezada pelos médicos. Assim, em 1946, fundou, naquela instituição, a “Seção de Terapêutica Ocupacional”. No lugar das tradicionais tarefas de limpeza e manutenção que os pacientes exerciam sob o título de “terapia ocupacional”, ela criou ateliês de pintura e modelagem. A intenção era possibilitar aos doentes reatar seus vínculos com a realidade através da expressão simbólica e da criatividade. Revolucionou, a partir daí, a Psiquiatria então praticada no país.

Casa das Palmeiras


Poucos anos depois da fundação do Museu, em 1956, desenvolveu outro projeto, também revolucionário para sua época: criou a Casa das Palmeiras, uma clínica voltada à reabilitação de antigos pacientes de instituições psiquiátricas, onde podiam expressar sua criatividade, sendo tratados como pacientes externos, numa etapa intermediária entre a rotina hospitalar e sua reintegração à vida em sociedade

O auxílio dos animais aos pacientes


Pioneira na pesquisa das relações emocionais entre pacientes e animais (que costumava chamar de co-terapeutas), Nise percebeu essa possibilidade de tratamento ao observar um paciente a quem delegara os cuidados de uma cadela abandonada no hospital, tendo a responsabilidade de tratar deste animal como um ponto de referência afetiva estável em sua vida. Ela expôs parte deste processo em seu livro Gatos, a Emoção de Lidar, publicado em 1998.



Pioneira da psicologia junguiana


Pelo conjunto do seu trabalho, introduziu e divulgou, no Brasil, a psicologia junguiana. Interessada em seu estudo sobre os mandalas, tema recorrente nas pinturas de seus pacientes, ela escreveu, em 1954, a Carl Gustav Jung, iniciando uma troca de correspondências.
Jung a estimulou a apresentar uma mostra das obras de seus pacientes, que recebeu o nome A Arte e a Esquizofrenia, ocupando cinco salas no “II Congresso Internacional de Psiquiatria”, realizado em 1957, em Zurique. Ao visitar com ela a exposição, ele orientou-a a estudar mitologia como uma chave para a compreensão dos trabalhos criados pelos internos. Nise da Silveira estudou no Instituto Carl Gustav Jung em dois períodos: de 1957 a 1958, e de 1961 a 1962. Lá, recebeu supervisão em psicologia analítica de Marie-Louise von Franz, assistente de Jung. Retornando ao Brasil, após seu primeiro período de estudos junguianos, formou, em sua residência, o Grupo de Estudos Carl Jung, que presidiu até 1968.
Escreveu, dentre outros, o livro Jung: vida e obra, publicado, em primeira edição, em 1968.

Morte


Nise da Silveira faleceu no dia 30 de outubro de 1999, aos 94 anos, de insuficiência respiratória aguda, no Hospital Miguel Couto, zona Sul do Rio

Prêmios e reconhecimentos


Em reconhecimento a seu trabalho, foi agraciada com diversas condecorações, títulos e prêmios em diferentes áreas do conhecimento, entre outras:

• “Ordem de Rio Branco” no Grau de Oficial, pelo Ministério das Relações Exteriores (1987).
• “Prêmio Ciccillo Matarazzo Personalidade do Ano de 1992”, da Associação Brasileira de Críticos de Arte.
• “Medalha Chico Mendes”, do grupo Tortura Nunca Mais (1993).
• “Ordem Nacional do Mérito Educativo”, pelo Ministério da Educação e do Desporto (1993).

Reconhecimento internacional


Membro fundadora da Sociedade Internacional de Expressão
Psicopatológica (“Societé Internationale de Psychopathologie de l’Expression”), sediada em Paris.
Sua pesquisa em terapia ocupacional e o entendimento do processo psiquiátrico por meio das imagens do inconsciente deram origem a diversas exibições, filmes, documentários, audiovisuais, cursos, simpósios, publicações e conferências

Legado


Seu trabalho e ideias inspiraram a criação de museus, centros culturais e instituições terapêuticas, similares às que criou, em diversos estados do Brasil e no exterior, por exemplo:

• “Museu Bispo do Rosário”, da Colônia Juliano Moreira (Rio de Janeiro).
• “Centro de Estudos Nise da Silveira” (Juiz de Fora, Minas Gerais).
• “Espaço Nise da Silveira” do Núcleo de Atenção Psicossocial (Recife).
• “Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira”, do Hospital Psiquiátrico São Pedro (Porto Alegre, Rio Grande do Sul).
•“Associação de Convivência Estudo e Pesquisa Nise da Silveira” (Salvador, Bahia).
• “Centro de Estudos Imagens do Inconsciente”, da Universidade do Porto (Portugal).
• “Association Nise da Silveira – Images de l’Inconscient” (Paris, França).
• “Museo Attivodelle Forme Inconsapevoli” (hoje renomeado “Museattivo Claudio Costa”, Genova, Itália).
• O antigo “Centro Psiquiátrico Nacional” do Rio de Janeiro recebeu em sua homenagem o nome de “Instituto Municipal Nise da Silveira”.

Em 2015, foi incluída na lista das grandes mulheres que marcaram a história do Rio. Em 2016, foi lançado o filme brasileiro de longa metragem intitulado “Nise: O Coração da Loucura”, dirigido por Roberto Berliner. O filme foi resultado de 13 anos de ampla pesquisa, e se baseou em um momento da vida de Nise da Silveira. No mesmo ano, o espetáculo “Nise da Silveira – Guerreira da Paz” narrou a história da psiquiatra alagoana e discípula de Carl G. Jung. O ator carioca Daniel Lobo dirigiu e interpretou o espetáculo que esteve em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp), durante curta temporada de grande sucesso.

Veto no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria


Seu nome quase chegou a ser incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, em projeto da Jandira Feghali (PCdoB), mas a decisão foi vetada por decreto do presidente Jair Bolsonaro, publicado no dia 25 de abril de 2022. Na justificativa do veto, está “não é possível avaliar o impacto do trabalho de Nise da Silveira no Brasil”.

O Museu de Imagens do Inconsciente


Em 1952, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, um centro de estudo e pesquisa destinado à preservação dos trabalhos produzidos nos estúdios de modelagem e pintura que criou na instituição. Os registros abriram novas possibilidades para a compreensão mais profunda do universo interior do esquizofrênico.
Entre os artistas-pacientes que criaram obras incorporadas na coleção dessa instituição, estão Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros e Octávio Inácio. Esse valioso acervo alimentou a escrita do seu livro Imagens do Inconsciente.
Entre 1983 e 1985, o cineasta Leon Hirszman realizou o filme Imagens do Inconsciente, trilogia mostrando obras realizadas pelos internos a partir de um roteiro criado pela ilustre psiquiatra.

Por Manoela Ferrari