Junho, 2022 - Edição 280
O tesouro de Otto Lara Resende
Ser humano de notável brilho intelectual, o acadêmico Otto Lara
Resende teria completado 100 anos de vida no dia do trabalhador.
Nascido no dia 1º de maio de 1922, em São João del-Rey (Minas Gerais), o
quarto dos 20 filhos do professor Antônio de Lara Resende e Maria Julieta
de Oliveira veio ao mundo com um talento sem igual para a conversa.
Em seu centenário de nascimento, várias homenagens irão celebrar o jornalista e escritor, que brilhou tanto na vida profissional, quanto
pessoal. Uma das mais comentadas virá dos alunos da Rede Municipal de
Educação do Rio de Janeiro (que soma 1.543 unidades de ensino). Otto
Lara Resende foi escolhido como o autor homenageado na Ciranda com
Autores (em substituição a Ziraldo, por motivos técnicos). O concurso de
redação movimenta as escolas municipais desde 2009. Os participantes
estarão diante da oportunidade de conhecer mais a fundo a vida e a obra
de um escritor fascinante, que nos abriu um leque de variações na escrita,
com a mobilidade e fluidez de sua prosa.
Caso raro de cronista tardio, no finalzinho da vida, Otto Lara
Resende (1922-1992) conciliou jornalismo e literatura com preciosismo
ímpar. Dedicou-se à crônica com o mesmo rigor e disciplina de um
sonetista. A construção de sua prosa unia o silêncio de um observador
obsessivo e os devaneios de um distraído culto. Entre os hábitos de um
bom ouvinte e o dom da escrita confessional, ensaiou uma poética irre-
preensível. Alinhando matéria autobiográfica à literária, costurou tempos
históricos distintos, alinhavando reminiscências e caprichos da memória,
deixando como legado uma obra imperdível, que se firma, neste centená-
rio, como um dos tesouros dos emergentes da literatura brasileira.
Entre outras homenagens para este ano, Helena Lara Resende
e Marcos Ribeiro finalizam o documentário Otto, de trás para diante;
Elvia Bezerra organiza uma coletânea de cartas a seis amigos (missivista
compulsivo, dividiu muitas aflições por escrito) e Amir Labaki prepara
o monólogo Eu, Otto. Não faltará material para trazer de volta à tona o
radiante talento do imortal. Otto se foi para ficar, afirma quem conhece
sua obra.
Trajetória
Com imensa capacidade de comunicação, fisgado pelo jornalismo aos 16 anos, Otto Lara Resende começou a colaborar em O Diário, de Belo Horizonte, onde seu pai era um dos dirigentes. Pertenceu ao famoso grupo de intelectuais mineiros, que teve como expoentes, de projeção nacional, Emílio Moura, Guilhermino César (mais tarde radicado no Rio Grande do Sul) e, posteriormente, Hélio Pellegrino, Aníbal Machado, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Pedro Nava, e Carlos Drummond de Andrade, que se destacaram nõ só pelos laços de companheirismo, como, principalmente, pelo significativo valor de seus escritos.
Na capital mineira, formou-se em Direito na Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas, em 1945. Em seguida, deixou a direção do suplemento literário da Folha de Minas – que estivera sob seu comando por dois anos – e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde Paulo Mendes Campos, recém chegado à então capital do país, virou seu companheiro mais constante. Com ele, Hélio Pellegrino e Fernando Sabino, Otto – que afirmava ter horror ao ressentimento – era dotado de atributos fundamentais para compor o lendário grupo conhecido como Os quatro mineiros, que a certo momento ele mesmo batizou de “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”.
Na década de 1960, Otto Lara, genro do governador de Minas Gerais Israel Pinheiro, fez parte da Embaixada do Brasil em Lisboa, na qualida- de de Conselheiro Cultural, onde teve de procurar dar solução à difícil questão dos “excedentes” brasileiros matriculados em Universidades de Portugal.
Em 2 de outubro de 1979, tomou posse na Academia Brasileira de Letras como sexto ocupante da Cadeira 39, na sucessão de Elmano Cardim, recebido pelo acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco.
Cartas
As sólidas amizades que o escritor mineiro cultivou ao longo da vida podem ser conferidas na preciosa correspondência que trocou durante décadas com os melhores amigos, conservadas em arquivos particulares, hoje sob a guarda do Instituto Moreira Salles (IMS). O escritor paranaense Dalton Trevisan (1925) é, de longe, o interlo- cutor mais copioso do acervo. Abaixo dele vêm Fernando Sabino, Carlos Castello Branco e Francisco Iglesias, que não chegaram a enviar duas cen- tenas de cartas, cada um, mas expõem igual relação de respeito e querer mútuos.
Trevisan conheceu Lara Resende no Rio de Janeiro, em 1955, na casa de Fernando Sabino. Na época, trocou ideia sobre os contos que escrevia (Novelas nada exemplares). Otto já havia lançado a obra O lado humano (1952) e preparava-se para lançar os contos de Boca do inferno (1957), livro em que a infância é retratada sem a habitual inocência e que lhe renderia críticas severas.
A conversa na casa de Sabino continuou por meio de uma cor- respondência que se estendeu de 1956 a 1992, ano da morte de Otto, e fundou uma relação de amizade alicerçada em confiança, sobretudo, no que se refere a opiniões quanto à produção literária de cada um. Em relação aos textos de Boca do inferno, por exemplo, Dalton comentara em carta de 14 de fevereiro de 1956: “Vejo nele apenas um conto fraco – Dois Irmãos. Os demais mantêm nível esplêndido, com o sol de O segredo bri- lhando sobre todos eles. São contos perfeitos e acabados, como se diz em linguagem jurídica, e não trechos de romances.”
Parecia remoto que um deles publicasse algo sem o submeter à lei- tura do outro, ainda que tivesse de ouvir opiniões duras que a diferença de estilo de ambos justificava: o econômico Dalton podia reclamar de excessos do amigo: “A objeção que eu faria não é a primeira vez que lhe faço: às vezes você explica demais, para meu gosto, é claro”, escrevia ele a respeito de Filho de padre, também de Boca do inferno, na mesma carta. Os amigos usavam de franqueza rara nos palpites literários. Otto parecia, segundo suas cartas, ser implacável consigo mesmo e com seus próprios textos. Além de revisá-los e alterá-los obsessivamente, culpava- -se pelo que julgava defeitos. Admirava a concisão do estilo que chamava “daltônico”, detendo-se nos elogios, ressaltando o “enorme poder de criação”, sem excessos, sem “beletrismo” do amigo, que considerava “um escritor de verdade”.
As idas de Dalton Trevisan ao Rio, geralmente para tratar de ques- tões na editora José Olympio, rendiam tardes inteiras de muita conversa no escritório particular que Otto mantinha num apartamento, na rua Piratininga, que Geralda de Oliveira, cozinheira da família, chamava de “palacinho”.
Contistas por excelência, cada um deles publicou apenas um romance. Otto deixou, na carta ao amigo, com detalhes, o registro do penosíssimo trabalho de construção de O braço direito (1963), obra que Antonio Candido, no texto que escreveu para a quarta capa, chamou de “poderoso e estranho”.
Ambos tentaram escrever para teatro, mas interromperam o pro- jeto. Otto deixou, em seu arquivo no IMS, apenas o primeiro ato do que seria Um cadáver sob o divã.
Como um todo, as correspondências do acervo revelam os sonhos, as ambições e, sobretudo, as angústias de escritores que, certos de seu destino, são atormentados pela insegurança, pela insatisfação, pela busca da palavra exata, da expressão enxuta, da construção perfeita e da fideli- dade a um estilo.
Apesar de ter flertado com todas as formas de escrita, o exercício da crônica, no seu formato mais clássico (com coluna diária na imprensa), vingou com potência máxima no último ano de vida, quando o acadêmi- co mesclou, na mesma medida, a excelência do jornalismo com a literatu- ra. Do dia 1º de maio de 1991 ao dia 21 de dezembro de 1992, assinou um total de 508 textos, publicados a convite da Folha de São Paulo. Segundo os críticos, “Otto dotou a crônica da mesma disciplina apregoada por João Cabral de Melo Neto, sem perder a cadência da conversa que perpassa a poesia de Vinícius de Moraes”.
Estilo leve
A ligação de Rubem Braga (1913-1990) com o grupo mineiro do qual Otto fazia parte – que Mário de Andrade chamou “os vintanistas” – come- çou, de forma indireta, em 1931, quando o então rapazinho capixaba, de 18 anos, chegou a Belo Horizonte. Na década de 1940, frequentariam as mesmas redações em que Rubem já brilhava.
Apesar de jovem, parecendo veterano, “o velho Braga” pavimentou o caminho de um jornalismo que conjugava rigor de dados com estilo leve, desempolado, diferente do que se fazia na época, e, sem saber, pre- parou o terreno onde depois pisaria o quarteto mineiro. Os vintanistas de Belo Horizonte desembarcaram na capital do Brasil ao longo da década de 1940 (com exceção de Hélio, o mais novo, que chegaria por último). Era natural que se unissem a Braga, conhecido no Rio desde 1936, quando lançou o primeiro livro de crônicas (O Conde e o Passarinho, sendo sagrado como “O Sabiá da Crônica”, apelido dado por Sérgio Porto, o humorista Stanislaw Ponte Preta).
Entre 1957 e 1959, Otto Lara Resende mudou-se com a família para Bruxelas (a “Bruxa”, como ele chamava). Foi ser adido cultural na embai- xada do Brasil, na capital belga. Lá, aumentou o recebimento das cartas dos amigos. Com Braga, reencontrou-se na volta, não só nas visitas em casa, como também na redação da revista Manchete, onde trabalharam juntos. Dez anos depois, Otto assumiu outro posto de adido cultural, dessa vez em Lisboa, onde ficou de 1967 a 1969.
Conta Helena Lara Resende, viúva de Otto, que, depois da morte de Rubem Braga, um passarinho bicava, com regularidade, a janela de vidro da casa onde o casal morava, na Gávea. Otto dizia, meio divertido, meio sério: “Isso é o Rubem que vem me buscar.” Otto morreu em 28 de dezem- bro de 1992, aos 70 anos, dois anos depois do amigo.