Maio, 2022 - Edição 279

A cultura colossal de Fernanda Montenegro na ABL

O papel de acadêmica que Fernanda Montenegro protagonizou na noite de sua posse, na Academia Brasileira de Letras, preconiza a intensidade do sucesso dessa nova trajetória na vida da grande dama do teatro brasileiro.

No Petit Trianon lotado como jamais visto na Casa de Machado, com a presença de personalidades ilustres, como secretários municipais e estaduais, deputados, senadores e o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Com direito a telão e cadeiras na área externa, para acomodar todos os convidados, a plateia assistiu emocionada à cerimônia, na noite de 25 de março, interrompida com aplausos entusiasmados, em vários momentos. Fernanda foi conduzida à sua cadeira pelos acadêmicos Rosiska Darci de Oliveira, Cacá Diegues e o ex-presidente da República José Sarney. A atriz recebeu o colar de imortal das mãos do acadêmico Zuenir Ventura.

Nona mulher a ocupar uma cadeira na ABL (e a primeira atriz), num texto que misturou sua própria trajetória no teatro com a das artes cênicas no Brasil, a nova acadêmica, impecável em seu fardão, discursou para um público atento, do início ao fim. A atriz iniciou a fala citando Shakespeare, para definir sua relação com o mundo: “William Shakespeare deixou eternizado esse conceito estrutural da afirmação de uma arte. A vida é um palco. Todos nós, seres humanos, somos atores neste palco. Agradeço com meu coração e minha razão estar sendo aceita nesta casa com este elenco protagonista. (...) Para chegar aqui, são quase 80 anos de vida pública. É um reconhecimento.”

Fernanda reverenciou o marido Fernando Torres, além de atrizes e atores que fizeram história na arte de atuar e que deixaram saudades: “Memoráveis companheiros sem os quais nem eles, nem eu teríamos dado conta através dos nossos pulmões, dos nossos corações, da nossa criatividade, de todo um conjunto inimaginável de encenações de obras referenciais da grande dramaturgia.” A voz firme destacou a coragem necessária para abraçar a profissão artística: “Emocionada, tomo posse da cadeira número 17. Sou atriz, venho desta mística arte arcaica que é o teatro. Sou a primeira representante da cena brasileira a ser recebida nesta casa. Esse meu ofício expressa uma estranheza compreensão. A raiz desta arte está na complexidade de só existir através do corpo e da alma de um ator ou de uma atriz ao trazer a literatura dramática para a verticalidade cênica. Não se cumpre essa profissão sem devoção, sem obstinação, sem coragem.”

Forte e coerente ao longo de toda a sua trajetória, não faltou o registro do seu posicionamento em prol da arte e da cultura, diante do difícil momento político em que vivemos: “Resistimos. Somos eternos.” Foi ovacionada.

Nas cerimônias de posse, todo novo acadêmico é recebido por um veterano. O discurso de posse coube à acadêmica Nélida Piñon, que definiu a entrada da amiga na ABL como um grande dia para a pátria: “Epidauro, Delfos, todos os teatros gregos, e os anfiteatros romanos, regozijam-se com Fernanda Montenegro, que ingressa nessa noite na Academia Brasileira de Letras. Sob a guarda dos deuses do teatro, dos mistérios de Elêusis, dos que regeram as claves da dramaturgia, entra nesta Casa pela porta grande da arte cênica. Como intérprete maior do pátio dos milagres que é a vida, ressalta Dionísio, cuja ferocidade mítica cedeu à humanidade o vinho da palavra que inebria e salva-nos. Aquele verbo fecundado pelo Ágora grego, pelos miseráveis que resguardam no casulo as résteas do mistério da criação.”

Por problemas na visão, fez-se uma exceção na leitura do texto, e Nélida convidou a atriz e escritora Fernanda Torres, filha da nova acadêmica, para representá-la. A surpresa – e a emoção – tomaram conta, mais uma vez, do ambiente. O texto belíssimo e irretocável de Nélida Piñon foi potencializado em força e beleza pela voz e talento de Fernanda Torres: “Ancorada na cultura cênica e endereçado na cultura pátria, pisar as tábuas do tablado era render-se a uma cultura colossal (...) Não houve falha em Fernanda Montenegro no amor à arte de interpretar, nem na veemente defesa da condição humana. Para tanto, não alijou a memória que enaltecia ancestrais e expoentes pregressos que deram às novas gerações razão de seguir suas pegadas heroicas. (...) Mas cá estou eu diante do xadrez da realidade, a enfrentar o enredo da nova acadêmica com resumos certamente equivocados e imprecisos, a submeter-me ao juízo implacável da História. Contudo, afirmo que Fernanda foi tecida pela urdidura familiar, pelo mistério de uma vocação jamais oscilante, e pela fervorosa adesão ao Brasil. Pilares estes que, conjugados, propiciaram a uma artista atingir o ápice da grandeza”, escreveu Nélida, no texto lido por Fernanda Torres.

Aos 92 anos, Fernanda é a primeira mulher a ocupar a Cadeira 17 da Academia, sucedendo o acadêmico e diplomata Affonso Arinos de Mello Franco, falecido no dia 15 de março de 2020. O posto teve, como ocupantes, Sílvio Romero (fundador) – que escolheu como patrono Hipólito da Costa.

Eleita com 32 votos (2 em branco) para integrar o grupo de imortais, no dia 4 de novembro de 2021, a nova acadêmica estreita os laços da instituição com as artes cênicas.

Os ocupantes anteriores da cadeira 17 foram: Sílvio Romero (fundador) – que escolheu como patrono Hipólito da Costa –, Osório Duque-Estrada, Roquette-Pinto, Álvaro Lins e Antonio Houaiss. A presença da atriz ultrapassa o mundo da Literatura e a Academia Brasileira de Letras se esforçou para torná-la imortal.

O estatuto da Casa de Machado deixa claro a reserva de vagas para personalidades de prestígio em suas áreas. Premiada nacional e internacionalmente por sua carreira, Fernanda é a única brasileira já indicada ao Oscar de Melhor Atriz pela atuação em “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles. Ela já venceu, também, o Emmy Internacional, o Festival de Berlim e o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

Em 2018, organizado cuidadosamente pela própria atriz, seu itinerário fotobiográfico resultou numa caprichada publicação de capa dura, com 500 páginas, da “Edições SESC-São Paulo” (2018). O livro demandou cerca de seis anos de trabalho editorial. Cada página foi pensada e posicionada conforme o fluxo temporal dos fatos, respeitando a sequência cronológica sempre que possível. A obra inclui também depoimentos de escritores, diretores, críticos de arte, atores e amigos.

Em 2019, no marco de seus 90 anos, Fernanda Montenegro publicou um livro de memórias, Prólogo, ato, epílogo (Cia. das Letras). São 328 páginas de uma prosa afetiva, inteligente e de extrema sensibilidade. Através de uma narrativa fluida e interessante, é possível conhecer seus antepassados – lavradores portugueses, do lado paterno, e pastores sardos, do lado materno.

Em julho, a atriz reencontra o Teatro R. Magalhães Jr., no prédio da ABL, pela primeira vez como acadêmica, para uma leitura de Nelson Rodrigues. Fernanda conhece bem o local, onde se apresentou diversas vezes. Em uma delas, em 2013, interpretou uma adaptação do romance Capitu, Memórias Póstumas, de seu agora colega de fardão, Domício Proença Filho.

Memória



Nascida no dia 16 de outubro de 1929, no bairro do Campinho, Zona Norte do Rio de Janeiro, Arlette Pinheiro pisou em um palco, pela primeira vez, aos oito anos de idade para participar de uma peça na igreja. Mas sua estreia oficial, ocorreu em dezembro de 1950, ao lado do marido Fernando Torres, no espetáculo “3.200 Metros de Altitude”, de Julian Luchaire. Com o nome artístico adotado, Fernanda Montenegro se tornou sinônimo de excelência na Cultura do país. Em 1999, Fernanda Montenegro foi condecorada com a maior comenda que um brasileiro pode receber da Presidência da República, a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito “pelo reconhecimento ao destacado trabalho nas artes cênicas brasileiras”. Na época, uma exposição realizada no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro,comemorou os 50 anos de carreira da atriz. Em 2004, aos 75 anos, recebeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Tribeca, em Nova York, por sua atuação em O Outro Lado da Rua, de Marcos Bernstein.

Em seu celebrado livro de memórias, Fernanda registra páginas de grande emoção, onde nada lhe escapa: a lembrança dos desafios de criar os dois filhos sobrevivendo como artistas; a busca permanente pela qualidade; a persistência combativa durante os anos de chumbo; a capacidade constante de reinvenção; o padecimento de Fernando; o inesperado sucesso internacional, nos anos 1990; a crença na terra que acolheu seus antepassados imigrantes e a devoção por esse país. Não há dúvidas de que a artista encarna o melhor do Brasil.



A luz de Gil floresce na ABL



Em noite descrita pelo acadêmico Antonio Carlos Secchin como “magia de versos e luzes”, o cantor, compositor e ex-ministro Gilberto Gil irradiou o brilho do seu talento pelos salões da Academia Brasileira de Letras, durante a solenidade de sua posse como novo ocupante da cadeira 20, sucedendo Murilo Melo Filho, um dos grandes jornalistas brasileiros da segunda metade do século XX. Aos 79 anos, Gil foi recebido na ABL pelo acadêmico Antonio Carlos Secchin, com um discurso cujo brilhantismo fez jus ao marco histórico do evento.

Em sua fala de posse, Gil disse que, entre as tantas honrarias que a vida lhe proporcionou, entrar na ABL tem uma dimensão especial. “Não só porque a ABL é a casa de Machado de Assis, escritor universal, afrodescendente como eu, mas também porque a ABL representa a instância maior, que legitima e consagra, de forma perene, a atividade de um escritor ou criador de cultura em nosso país.” Com direito à canja poética, Gil não frustrou os que dele esperavam um canto: “Se a noite inventa a escuridão, a luz inventa o luar. O olho da vida inventa a visão, doce clarão sobre o mar.”

Em outro trecho, citou as alegrias e perdas ao longo da vida, destacando a importância de permanecer firme na resistência contra o obscurantismo: “Não desanimo. É preciso resistir sempre. Apesar dos tempos politicamente sombrios que vivemos, aposto na esperança contra a treva física e moral. Que haja ao menos a chama de uma vela até chegarmos a toda a luz do luar”, poetizou, acrescentando: “Poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de cultura foram tão hostilizados e depreciados como agora. Há uma guerra em prol da desrazão e do conflito ideológico nas redes sociais da internet, e a questão merece a atenção dos nossos educadores e homens públicos. A ABL tem muito a contribuir nesse debate civilizatório. E eu gostaria, aqui, efetivamente, de colaborar para o debate, em prol da cultura e da justiça”, acrescentou ao som de muitos aplausos.

Gil saudou os acadêmicos, os amigos, a família (em especial a mulher, Flora) e os seus pais, a professora primária Claudina e o médico José Gil Moreira (“a eles devo o meu amor às letras e à música”). E fez as menções de praxe aos ocupantes anteriores da cadeira 20: o patrono Joaquim Manuel de Macedo (“um nome a merecer resgate, para além de sua eterna Moreninha”), o fundador Salvador de Mendonça, o “poeta, satirista e boêmio” Emílio de Menezes, Humberto de Campos, Múcio Leão, Murilo de Melo Filho (seu antecessor imediato) e o general Aurélio de Lyra Tavares – “um dos três integrantes da Junta Governativa Provisória que comandou o Brasil de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969” – a mesma que levou Gil e Caetano a serem presos e exilados. Mas o brilho, a elegância e a elevação moral de Gil, mais uma vez, se sobrepuseram ao desconforto de citar o general. O novo acadêmico relevou, iluminando-lhe o lado positivo: “Na constatação de como gira, às vezes com ironia, a roda da História, do ponto de vista acadêmico, os que conheceram e conviveram com o general Lyra Tavares nesta Casa reiteram o seu comportamento sempre afável e solidário, sua cultura literária e histórica e sua dedicação aos valores que balizam a história da ABL”, amenizou Gil. Seguindo os protocolos, Fernanda Montenegro entregou a Gil o colar de acadêmico; Arnaldo Niskier entregou a espada e Cacá Diegues, o diploma.

No discurso de recepção ao colega imortal, Secchin apontou o prenúncio de um destino brilhante para Gilberto Passos Gil Moreira no momento imediato do seu nascimento, ao ser nomeado: “Segundo o dicionarista Antenor Nascentes, uma das etimologias de ‘Gilberto’ é a de “companheiro ilustre”, explicou.

Num texto impecável, que somou erudição e excelência literária, Secchin deu uma verdadeira aula de lirismo, interpretação e abrangência do ofício poético, recorrendo às múltiplas explicações para o fenômeno criativo de Gilberto Gil: “A perspectiva de Gil, ampla, ecumênica, dissolve hierarquias e congrega alteridades. Experimentador de formas, explorador de um largo espectro temático, o cancioneiro de Gilberto Gil assombra pela complexidade e pela amplitude, pautando-se, ao mesmo tempo, por um princípio de clareza e comunicabilidade. A cadeira 20 vai comportar muitos Gilbertos. Por isso, equivoca-se quem supõe que a ABL esteja simplesmente acolhendo Gilberto Gil; na verdade, ao acolhê-lo, ela se engrandece com a chegada do múltiplo Gilberto Mil.”

Por Manoela Ferrari