Dezembro, 2021 - Edição 274

Fernanda Montenegro no elenco da ABL

A votação que elegeu Fernanda Montenegro para a cadeira nº 17 da Academia Brasileira de Letras (ABL) foi mera formalidade. Afinal, a Grande Dama do Teatro Brasileiro era a única candidata para a vaga. Eleita com 32 votos (2 em branco), a única atriz brasileira indicada ao Oscar, vencedora do Prêmio no Festival de Berlim e de incontáveis premiações nacionais e estrangeiras, Fernanda Montenegro vai ocupar a vaga deixada pelo acadêmico e diplomata Afonso Arinos de Melo Franco, falecido no dia 15 de março de 2020. Os ocupantes anteriores da cadeira 17 foram: Sílvio Romero (fundador) – que escolheu como patrono Hipólito da Costa –, Osório Duque-Estrada, Roquette-Pinto, Álvaro Lins e Antonio Houaiss.

A presença da atriz ultrapassa o mundo da Literatura e a Academia Brasileira de Letras se esforçou para torná-la imortal. O estatuto da Casa de Machado deixa claro a reserva de vagas para personalidades de prestígio em suas áreas. “Fernanda Montenegro é um dos grandes ícones da cultura brasileira. Intelectual engajada e sensível leitora do real. Sua presença enriquece os laços profundos da Academia com as artes cênicas. Com ela, adentram luminosos personagens que marcaram gerações, passado, presente e futuro”, declarou o presidente da ABL, Acadêmico Marco Lucchesi.

Em 2018, organizado cuidadosamente pela própria atriz, o itinerário fotobiográfico de Fernanda Montenegro resultou numa caprichada publicação de capa dura, com 500 páginas, da Edições SESC-São Paulo (2018). A obra é dividida em 11 capítulos, narrando a trajetória pessoal e profissional da grande dama, cuja carreira se confunde com a história da dramaturgia brasileira. O material inclui raridades do acervo de fotos de Fernanda e registros raros de atuação ao lado de outros grandes nomes do palco, como Nathália Timberg, Paulo Autran, Tônia Carrero e Sérgio Britto.

O livro demandou cerca de seis anos de trabalho editorial. Cada página foi pensada e posicionada conforme o fluxo temporal dos fatos, respeitando a sequência cronológica sempre que possível. A obra inclui também depoimentos de escritores, diretores, críticos de arte, atores e amigos.

Em 2019, no marco de seus 90 anos, a atriz publicou um livro de memórias, Prólogo, Ato, Epílogo (Cia das Letras), trazendo-nos o frescor de uma artista eternamente genial. São 328 páginas de uma prosa afetiva, inteligente e de extrema sensibilidade. Através de uma narrativa fluida e interessante, é possível conhecer seus antepassados – lavradores portugueses, do lado paterno, e pastores sardos, do lado materno.





Memória


Nascida no dia 16 de outubro de 1929, no bairro do Campinho, Zona Norte do Rio de Janeiro, Arlette Pinheiro pisou em um palco, pela primeira vez, aos oito anos de idade para participar de uma peça na igreja. Mas sua estreia oficial ocorreu em dezembro de 1950, ao lado do marido Fernando Torres, no espetáculo 3.200 Metros de Altitude, de Julian Luchaire. Com o nome artístico adotado, Fernanda Montenegro se tornou sinônimo de excelência na Cultura do país. Na Tupi, participou, por dois anos, de cerca de 80 peças, exibidas nos programas Retrospectiva do Teatro Universale Retrospectiva do Teatro Brasileiro.

Ganhou o prêmio de Atriz Revelação da Associação Brasileira de Críticos Teatrais, em 1952. Mudouse para São Paulo em 1954, onde fez parte da Companhia Maria Della Costa e do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Com o marido, formou sua própria companhia, o “Teatro dos Sete” – acompanhada também de Sergio Britto, Ítalo Rossi, Gianni Ratto, Luciana Petruccelli e Alfredo Souto de Almeida.

Em 1963, estreou na TV Rio, com as novelas Amor Não é Amor e A Morta sem Espelho, ambas de Nelson Rodrigues. Na recém-criada TV Globo, nesse período, fez participação na série de teleteatro 4 no Teatro (1965), dirigida por Sérgio Britto. Em 1967, também integrou o elenco da TV Excelsior: interpretou a personagem Lisa, em Redenção, de Raimundo Lopes.

Ao longo da carreira, a atriz participou também de minisséries como Riacho Doce (1990), Incidente em Antares (1994), O Auto da Compadecida (1999) e Hoje é Dia de Maria (2005). No caso da minissérie baseada na obra do Acadêmico Ariano Suassuna, Fernanda Montenegro viveu a própria Compadecida.

Em 1999, Fernanda Montenegro foi condecorada com a maior comenda que um brasileiro pode receber da Presidência da República, a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito “pelo reconhecimento ao destacado trabalho nas artes cênicas brasileiras”. Na época, uma exposição realizada no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro, comemorou os 50 anos de carreira da atriz. Em 2004, aos 75 anos, recebeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Tribeca, em Nova York, por sua atuação em O Outro Lado da Rua, de Marcos Bernstein.

Em seu celebrado livro de memórias, Fernanda registra páginas de grande emoção, onde nada lhe escapa: a lembrança dos desafios de criar os dois filhos sobrevivendo como artistas; a busca permanente pela qualidade; a persistência combativa durante os anos de chumbo; a capacidade constante de reinvenção; o padecimento de Fernando; o inesperado sucesso internacional, nos anos 1990; a crença na terra que acolheu seus antepassados imigrantes e a devoção por esse país.

Não há dúvidas de que a artista encarna o melhor do Brasil. Não surpreende que alguém que passou a vida memorizando textos tenha desenvolvido notável capacidade de rememorar, com tanta sutileza, fatos ocorridos décadas atrás. Há anos encantando multidões em palcos e telas pelo mundo, Fernanda Montenegro revela-se, em Prologo, Ato, Epílogo, uma verdadeira mestre contadora de histórias: “Não romanceei. Tenho quase um século de vida, portanto posso dizer: ‘Era no tempo do rei.’” Viva nossa Rainha!



A ABL com o realce de Gilberto Gil


Um dos maiores artistas da história do Brasil – e um dos mais reconhecidos fora dele – Gilberto Gil vai ocupar a cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras. A vaga foi aberta em maio do ano passado, com a morte do acadêmico Murilo Melo Filho. Esta foi a segunda eleição após a retomada das atividades presenciais na Casa de Machado, que ficou parcialmente fechada entre março de 2020 e outubro de 2021. A atriz Fernanda Montenegro foi eleita uma semana antes, para a cadeira 17.

O artista baiano, de 79 anos, era o favorito na disputa, recebendo 21 votos. Ele se junta a outros acadêmicos de notável trajetória na MPB, como o filósofo Antonio Cicero e o poeta Geraldo Carneiro, ambos letristas. Os outros candidatos eram o poeta e compositor Salgado Maranhão (7 votos) e o escritor Ricardo Daunt (nenhum voto).

Participaram da eleição 34 Acadêmicos de forma presencial ou virtual (um não votou por motivo de saúde). Foram 4 votos em branco e 2 nulos. Os ocupantes anteriores da cadeira 20 foram: Salvador de Mendonça (fundador) – que escolheu como patrono Joaquim Manuel de Macedo –, Emílio de Meneses, Humberto de Campos, Múcio Leão e Aurélio de Lyra Tavares. Após o anúncio do seu nome, Gil comentou a escolha e falou sobre o processo de sua candidatura: “Sou um autor de canções populares, de música popular; uma boa quantidade delas (são 600 pelo menos). Algumas com reconhecida qualidade literária, o que é um aspecto também que deve ser considerado. Muito do acolhimento dado pelos acadêmicos se deve ao fato de que há certa qualidade no meu trabalho poético, na minha escritura como compositor”, disse Gil, em entrevista.

Sua eleição representa um passo por maior diversidade na instituição. Já faz tempo que a Academia tenta abrir as portas para a cultura popular, o que pesou a favor do cantor e compositor baiano na disputa. Em 1996, ele lançou o livro Todas as Letras, reunindo suas composições, cumprindo o pré-requisito de ter, pelo menos, um livro publicado para se candidatar. Além de sua enorme discografia, já foi coautor de alguns livros, como Gilberto Bem Perto (Nova Fronteira, 2013), com Regina Zappa, e Disposições Amoráveis (IyáOmin, 2016), com Ana de Oliveira.

O ex-ministro da Cultura (de 2003 a 2008) já havia sido convidado pelos acadêmicos para se candidatar à vaga do crítico e historiador Alfredo Bosi, com quem tinha proximidade, mas acabou preferindo disputar a cadeira 20. O presidente da ABL, Marco Lucchesi, em comunicado oficial, declarou a alegria em recebê-lo: “Gilberto Gil traduz o diálogo entre a cultura erudita e a cultura popular. Poeta de um Brasil profundo e cosmopolita. Atento a todos os apelos e demandas de nosso povo. Nós o recebemos com afeto e alegria.”

Gil acaba de voltar de uma turnê de 50 dias pela Europa com filhos e netos, e declarou que é com eles, no palco, que se sente mais imortal. Com relação à questão do espaço de afirmação e representatividade cultural do negro na instituição, o novo acadêmico acredita que a Casa de Machado está dando um recado ao Brasil. Um dos nomes mais importantes e premiados da música brasileira, sempre foi incansável na valorização da cultura afro: “Quando a Academia me acolhe, acolhe aquele que ela sabe quem é. O apreço que eu tenho pela formação negro-mestiça da sociedade brasileira. Os problemas relativos a isso e a necessidade de posicionamento em relação a esses problemas, que tem sido uma constante na minha vida.” A questão da representatividade na ABL ganhou destaque nos últimos anos, especialmente após a campanha da escritora Conceição Evaristo, em 2018. Mesmo sem se eleger, sua candidatura mobilizou o movimento negro. Desde os fundadores, Machado de Assis e José do Patrocínio, até Evaristo de Moraes Filho, Octávio Mangabeira, Domício Proença Fº e João Ubaldo Ribeiro, a presença de negros vem aumentando, mas ainda é pequena, considerando a abrangência do país.

Autor de canções clássicas como Aquele Abraço e Domingo no Parque e de álbuns revolucionários como Refavela e Expresso 2222, Gilberto Passos Gil Moreira é um dos nomes que ajudaram a mudar não apenas a música brasileira, como a cultura como um todo, a partir das inovações e transgressões do movimento tropicalista nos anos 1960. Em 1988, Gil foi eleito vereador em Salvador. Seu mandato foi marcado pela defesa de causas ambientais, que continuam sendo prioridades na agenda do artista filiado ao Partido Verde.

Vencedor de vários prêmios, entre eles o “Grammy Awards” e o “Grammy Latino”, recebeu do Governo francês a “Ordem Nacional do Mérito”, em 1997. Dois anos mais tarde, foi nomeado “Artista pela Paz”, pela UNESCO. Foi também Embaixador da ONU para agricultura e alimentação.

Como ministro da Cultura, entre 2002 e 2003, tentou mudar o “conceito de cultura no país”, como afirmou na época. Durante sua gestão, o orçamento para o setor aumentou de 0,2% para 0,5% do PIB. Na ABL, Gil poderá usar sua vivência como artista e gestor de políticas públicas para trabalhar pela difusão da cultura. Em mais de cinquenta álbuns lançados, ele incorpora a gama eclética de suas influências.

Em quase 60 anos de carreira, um dos criadores do Tropicalismo já deu várias voltas ao mundo, levado pela sua arte. São mais de 70 discos gravados, parcerias inesquecíveis e canções que viraram hinos.
Aquele abraço ao novo imortal!

Por Manoela Ferrari