xxxxx, 2021 - Edição 267

A atualidade de Shakespeare

Somos a somatória de nossa educação e cultura (ou a falta delas). Mas nem sempre temos ciência do que se passa ao nosso redor. Ter consciência do mundo, como nos ensinou Shakespeare, é saber que se entra num drama que existia antes de nós; que nele atuamos e que um dia vamos deixá-lo.

Em excelente artigo publicado, recentemente, no jornal O Globo, o antropólogo Roberto DaMatta (autor pioneiro do estudo “você sabe com quem está falando?”) fez uma comparação da atual “cena” brasileira com personagens retratados pelo clássico dramaturgo inglês. A reflexão nos levou a revisitar os ensinamentos de quem mais tem a ensinar sobre o teatro no mundo – o criador de Hamlet.

Nascido na Inglaterra, em 1564, e tendo vivido até 1616, Willian Shakespeare foi contemporâneo da descoberta do Brasil pelos portugueses, em 1500. Não há quem deixe de citá-lo como maior poeta e dramaturgo de todos os tempos, no idioma inglês, bem como entre aqueles poucos que decifraram de forma tão profunda a alma humana. Suas peças capturaram de modo sem precedentes as emoções associadas aos eternos conflitos humanos. O “pai da psicanálise”, Sigmund Freud (1856-1939), por exemplo, usou muitos de seus personagens para explicar inúmeros transtornos psicológicos. O célebre poeta Benjamin Jonson (1572-1637), famoso dramaturgo da Renascença, preconizou que seu contemporâneo seria o “gênio de todos os tempos”. De fato, as histórias, personagens e frases shakespearianas continuam permeando a cultura universal, questionando temas como o amor, a moral, a ética, a mentira, o poder e a guerra. Conhecido também como “O bardo imortal de Avon”, Shakespeare foi venerado já durante a vida, mas adquiriu um significado transcendente, anos depois. Os românticos, especialmente, aclamaram a sua genialidade e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência tamanha que o irlandês George Bernard Shaw (1856-1950) nomeou de “bardolatria”.

Autor de quase 40 peças (entre elas Hamlet, Romeu e Julieta, Otelo, Macbeth, Rei Lear, além de diversos poemas e sonetos), traduzidas além de 100 idiomas, sua obra, embora escrita há mais de quatro séculos, continua sendo referência de aprendizado contínuo para leitores de diferentes gerações, em todo o mundo. Personagens como Hamlet, Shylock, Lady Macbeth, Ofelia, Polônio, Banquo ou Iago, para citar apenas alguns, fogem dos arquétipos clássicos. Essa é uma de suas melhores habilidades: quando acreditamos que conhecemos o personagem, nos é revelado algo oculto que nos surpreende.

Com sua hábil escrita, Shakespeare traçou o contorno de figuras imortais: reis atormentados, comerciantes, bruxas ou doces apaixonados se mostram com as mesmas contradições de todos nós. O espectador contempla, ainda hoje, pedaços do seu próprio “eu” (ou de suas circunstâncias), presos ao cenário ou incrustados em magníficos personagens.

Em sua dramaturgia, encontramos um ordenamento de mundo fundamentado, em grande parte, na política (22 peças tratam de temas políticos, a maioria de forma direta). Ao alertar, em Hamlet, que “o tempo está fora dos eixos”, por exemplo, Shakespeare nos ensina, entre outras questões, que a política se caracteriza pela gravidade e pela disjunção. As diferentes formas de exercício do poder, em suas peças, dão significados distintos à vida dos indivíduos, à história de uma cidade ou ao destino de um povo. Os personagens shakespearianos – na sua natureza e humanidade – atravessam a vida defrontando-se consigo mesmo e com o poder, num encadeamento de fatos guiados também pelo destino (acontecimentos sem controle por parte do sujeito, em cujo limite está a morte).

Como não admirar as descrições das monarquias absolutistas, onde o Estado e a sociedade estão integrados? O governo como uma “família”, onde ser rei não é um cargo disputado, mas um papel predestinado. Na realeza shakespeariana, o legal e o circunstancial se fundiam no “sangue azul” e num indiscutível “direito divino”. Reis e nobres eram donos do reino. Não se governava por consentimento eleitoral, mas através de um elo com o sagrado. Se mudarmos os nomes dos personagens, os enredos não parecem atuais? A genialidade de Shakespeare pode ser atribuída, entre outras qualidades, à sua imensa capacidade de saltar do individual para o coletivo – e vice-versa. A abordagem de seus textos permite acompanhar as paixões humanas e as demências coletivas da história, oferecendo-nos o encontro entre política e vida, cujo pano de fundo é a presença constante da tragédia. Uma obra que une arte e política, homem e poder, caos e controle, vida e morte, colocando à disposição da humanidade um espaço de aprendizagem sempre aberto. O resultado é um legado inesgotável de leituras possíveis.

Segundo Edmund Wilson (1895-1972), expoente crítico literário norte-americano, “dois leitores nunca leem o mesmo livro”. Uma vez escrita, a literatura é reapropriada de forma dialética com a intenção original do autor. Os diálogos de um texto, somados à época e à biografia de cada um, constituem outra obra. Somos sempre três e faz parte do mistério do pensamento a interação dos polos. Shakespeare sempre será atual, universal e eterno: eis a questão.


Biografia

A biografia de William Shakespeare começa com seu nascimento, em 1564, em Stratford-upon-Avon, Warwickshire (Inglaterra). Seu pai, John Shakespeare, era vereador, e sua mãe, Mary Arden, uma senhora rica, de boa posição social.

Em 1582, Shakespeare deixou os estudos e começou a trabalhar. Com 18 anos, engravidou Anne Hathaway (1582-1616), filha de um agricultor. Depois do nascimento da criança, os dois se casaram e mudaram para Londres, onde ele se uniu ao grupo teatral The Chamberlain’s Men, logo se destacando com admirável sucesso. O casal teve três filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith.

A partir de 1592, surgiu a figura do Bardo. O “dramaturgo de Avon” começou a adquirir uma notável fama nos cenários londrinos. Seu mecenas, o jovem Henry Wriothesley, Duque de Southampton, o inseriu nos círculos intelectuais mais aclamados da época. Essa influência, somada ao seu caráter expansivo, fizeram com que tivesse uma vida social glamorosa e bastante agitada. Fez amizade com celebridades da época, como os escritores Christopher Marlowe, Ben Johnson, Robert Greene e Richard Burbage. Todos ficaram admirados com os seus primeiros trabalhos. Dessa forma, Henry IV (parte um) e, mais tarde, Henry IV (parte dois), junto com Henry V alcançaram sucesso estrondoso na cena teatral londrina.

Comédias como Dois cavaleiros em Verona e Sonhos de uma noite de verão demonstravam a engenhosidade, a originalidade e o encanto de histórias que, cada vez mais, atraiam o público da época. Em 1597, o Bardo de Avon já havia escrito 15 das 38 obras que conhecemos atualmente. Chegado o novo século, suas obras literárias continuaram crescendo e amadurecendo, com legados imortais para a nossa história, como Hamlet, Othello e Rei Lear, para citar apenas alguns. Os diálogos deste segundo momento eram mais ricos, mais dinâmicos e criavam, por sua vez, um estilo poético mais polido e profundo. Os textos de Hamlet são diferentes dos que podemos perceber em épocas anteriores, como em Henry V. A linguagem é mais hábil e as falas mais ágeis, mostrando a profundidade psicológica dos personagens. Na época, William Shakespeare publicou seus famosos Sonetos.

Outra conquista do “Bardo” foi a de enriquecer o idioma inglês, criando expressões, tais como “to fall in love” e “all our yesterdays”. Suas últimas obras, como Cymbeline e A Tempestade, dão forma a um gênero que conversa com a tragicomédia, em que as histórias são um pouco sombrias, sem, no entanto, jamais perder a habilidade de surpreender o espectador. Shakespeare morreu no mesmo dia do seu aniversário, aos 52 anos.

É bem conhecida a coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e William Shakespeare (ambos com data de falecimento no dia 23 de abril de 1616). A morte do dramaturgo inglês, até hoje, envolve especulações, assim como a sua própria identidade. Envolto em mistérios, há muitas incertezas sobre a sua biografia. Não faltam teorias – sendo a mais crível a de que ele seria um pseudônimo de Christopher Marlowe, poeta e dramaturgo da mesma época, que teria trabalhado na composição de algumas peças de teatro atribuídas a Shakespeare.

Os restos mortais do Bardo foram sepultados na igreja da Santíssima Trindade (Holy Trinity Church), em Stratford-upon-Avon. Seu túmulo mostra uma estátua vibrante, em pose de literata, mais vivo do que nunca. A cada ano, na comemoração de seu nascimento, é colocada uma nova pena de ave na mão direita de sua estátua. Mantém-se, de geração em geração, a memória de quem nos presenteou com criações imortais.


A arte de enriquecer um idioma

Apesar das polêmicas e de não sabermos ao certo se todas as obras shakespearianas foram, de fato, escritas pelo “Bardo de Avon”, há uma realidade inegável: a imensidão do seu legado. Uma de suas heranças foi configurar a linguagem para adaptá-la aos seus propósitos artísticos.
Com isso, ele enriqueceu o idioma inglês de forma admirável. Estima-se que, a partir de sua obra, foram incluídas cerca de 2000 novas palavras ao idioma. Termos como “auspicioso”, “minguante” e “intempestivo”, para citar apenas alguns exemplos, são resultado de sua magnífica imaginação. Além disso, seus personagens figuram em nossa consciência coletiva, sendo referências chaves para entender muitas realidades, inclusive o atual cenário brasileiro.

Por Manoela Ferrari