Setembro, 2021 - Edição 271

O pioneirismo de Pedro Bloch

Antecipamos homenagem ao Dia das Crianças, no próximo mês através de uma justa reverência a Pedro Bloch (1914 – 2004), um dos maiores foniatras e dramaturgos da segunda metade do século XX, no Brasil. Num país de memória curta, principalmente no que tange à Cultura, considerando a grandeza da contribuição do teatrólogo brasileiro mais representado no exterior (mais, inclusive, do que Nélson Rodrigues e Dias Gomes), todos os aplausos devem ser ruidosos. Atualmente, muito se preconiza quanto à humanização da saúde.

O legado de Pedro Bloch não pode figurar fora desses ensinamentos. Além de ele próprio ouvir os pacientes miúdos, recolhendo matéria-prima para seus estudos e textos, dava voz à meninada, reproduzindo suas histórias. Assim, amplificou o contato revelador que ele anotava por meio dessa peculiar percepção do mundo.

Escutar e dialogar com os pequenos foi a chave do seu trabalho, em que o espaço dado à oralidade das crianças resultou, como consequência luminosa, a escrita de uma nova história da infância, considerando a voz dos pequenos sobre si mesmos. Nascido em Jitomir, na Ucrânia, Bloch veio para o Brasil em 1922, aos oito anos de idade, junto com o primo Adolpho Bloch, fundador da revista Manchete. Filho de um comerciante de tecidos, ucraniano como Clarice Lispector, cresceu em Vila Isabel e naturalizou-se brasileiro. Estudou no Colégio Pedro II e, posteriormente, cursou a Faculdade Nacional de Medicina da Praia Vermelha (atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Formou-se em 1937. Chegou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Considerado um dos maiores nomes da fonoaudiologia no país, especialista em foniatria, cuidou de vozes de vários artistas, como Roberto Carlos, Gal Costa, João Gilberto, Antônio Fagundes, Chico Anísio e Luciano Pavarotti, além de celebridades e políticos, como Carlos Lacerda.



Fundador da Federação Brasileira de Otorrinolaringologia (precursora da Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia), atendia, principalmente, crianças, de onde tirou inspirações para os seus mais de 100 livros, a maioria infantojuvenis. Fundou o Grêmio Científico e Literário e colaborou para diversos jornais e revistas escolares.

Por diversas vezes, chegou a declarar o quanto gostava de ser reconhecido como “o homem que conta historinhas de criança”, que ele coletava e escrevia porque reconhecia, esboçados nelas, traços de uma espécie de sabedoria infantil, percepção que, na época, era pouco absorvida. “O mundo infantil é cheio de mistério e poesia, suspense e humor. [...] Seria de desejar que todos os pais guardassem as frases mais expressivas dos filhos, como verdadeiros tesouros. Mas o que ocorre, normalmente, é que se conserva um flagrante fotográfico inexpressivo ou uma botinha, um boneco uma mecha de cabelo. Quase nunca percebe que o que a criança diz, em suas diferentes fases, são pedacinhos de alma dessa criança”, afirmou com sabedoria.

Bloch manteve uma seção humorística, contando historinhas de criança, nas revistas Manchete e Pais & Filhos, que depois transformou em livros, com os seus anedotários infantis.



Trabalho inovador

Em seu inovador trabalho literário, centrado na oralidade dos pequenos que lhe inspiravam textos, cabe observar que o objetivo inicial era o de amplificar a exposição das riquezas do universo infantil para o público adulto. O papel de personagem destinado às crianças, no entanto, se expandiu. Além do adulto, Bloch logo formou, em torno de suas publicações, um público fiel de leitores mirins, o que era algo excepcional para a época.

Utilizando a comicidade como filtro facilitador na comunicação, como bom interlocutor da meninada, o médico apontava que os problemas de seus pacientes mirins apareciam, em grande parte, quando os pais não os inseriam no diálogo. O autor usou o humor para possibilitar que a voz da criança fosse, de fato, ouvida.

Nas palavras do próprio Bloch, sua intenção em retrabalhar e divulgar suas “observações” era dar voz às características únicas embutidas na infância: “O humor infantil, o que a criança diz, tem características tão próprias, tão originais, tão suas, que os referenciais do adulto não conseguem fixar com facilidade. [...] É que aqueles seres pequeninos parecem ter uma infinidade de segredinhos, de particulares, de confidências e mistérios. Se compreendem mais pelo implícito do que pelo proferido. E o proferido é, quase sempre, o preferido.”

Bloch defendeu a prática da conversação com os pequenos, militando para que todos anotassem e lhe encaminhassem as falas infantis – atitude que resultou na mudança da própria forma de conceber a criança como um indivíduo no meio social que estava em processo, na época. Dentre os inúmeros textos nesse sentido, destacamos uma seleção de onze volumes publicados entre 1963 e 1998: Criança Diz Cada Uma! (1963); Essas Crianças de Hoje (1970); O Menino Falou e Disse (1974); Poxa, que Meninos! (1977); Criança é Isso Aí (1980); Esses Meninos de Ouro! (1983); Outras de Criança Diz Cada Uma! (1983); Criança Sabe das Coisas (1984); Essas Crianças Fabulosas (1987); O Incrível Humor da Criança (1989) e A Sabedoria da Criança (1998).

Livros relativamente pequenos, de leitura ágil e divertida, todos são resultantes do trabalho com humor, envolvendo a participação direta das crianças. Já na primeira publicação, o autor fez um comentário explicativo que pode ser estendido aos outros volumes, assumindo-se como escutador de crianças: “Reuni uma série de coisas ditas e observadas no mundo das crianças. Foi das experiências mais fascinantes de minha vida”.

Para Bloch, era fundamental permitir que a criança pudesse expressar livremente seus posicionamentos, resgatando o respeito que a sabedoria infantil merece: “Muita gente grande faz concessões à sabedoria da criança. Mas faz, apenas, concessões. Acham mais graça no tatibitate e nos erros que ela comete do que no que ela possa apresentar de mais profundo, de mais consistente, de mais original. É o resgate de um respeito pela criança, cada vez maior, que este livro pretende, da maneira mais singela.”

Foi extremamente inovador, para a época, a noção da criança como um ser único e portador de relativa autonomia. Delineava-se, com imensa e efetiva contribuição do trabalho de Bloch, o esboço de uma nova definição de criança que se percebeu no Brasil, especialmente, a partir do final da década de 1960.

Destaca-se, na fala desse grande médico, jornalista, dramaturgo e escritor, uma linha de pensamento que percebe e considera a criança não apenas como receptora de estímulos culturais disponibilizados pelos adultos, mas também como produtora autônoma de significados. Ao ser indagado a definir a criança, certa vez, respondeu Bloch: “O que é uma criança? [...] A criança é um todo, uma realidade concreta. Pode e deve crescer, em todos os aspectos, segundo suas leis evolutivas. [...] Sua evolução afetiva condiciona sua evolução intelectual, suas capacidades de recepção, de memorização, de integração, de expressão. A linguagem falada é a base da comunicação. Sua aquisição normal é indispensável ao progresso do desenvolvimento intelectual. A comunicação é própria das sociedades humanas. Normalmente constituída, ela conduz à formação de indivíduos de valor ampliado, mais equilibrados.”


Dramaturgia

O interesse de Pedro Bloch pela dramaturgia começou a surgir quando, ainda criança, conheceu atores e compositores, como Noel Rosa e Catulo da Paixão Cearense, que se reuniam em sua casa. O pai, recém-chegado da Ucrânia, estimulava o seu gosto por arte. No teatro, seu grande sucesso foi As Mãos de Eurídice, que estreou em 13 de maio de 1950, com Rodolfo Mayer no papel do homem que retorna à sua antiga casa, depois de perder o dinheiro e a amante. O monólogo teve sucesso imediato e logo passou a ser apresentado pelos teatros do Brasil e do mundo. Encenada mais de 60 mil vezes em cerca de 45 países, a peça fez de Bloch o dramaturgo brasileiro mais traduzido e representado no exterior.

Dois anos depois, emplacou outro sucesso: Dona Xepa, que mais tarde, adaptada por Gilberto Braga, foi novela na Rede Globo, tendo Yara Cortes como a protagonista. Dona Xepa foi a 1ª novela das 18h baseada numa obra contemporânea. Outra de suas peças – Lua Cheia de Amor – também foi adaptada para novela das 19h, estrelada por Marília Pêra e Francisco Cuoco, em 1990.

Como jornalista, foi colaborador da revista Manchete e do jornal O Globo. Morreu aos 89 anos de idade, de insuficiência respiratória aguda, em seu apartamento, no bairro de Copacabana, onde viveu sempre na companhia da mulher, Míriam.

Em uma de suas últimas entrevistas, ao ser perguntado de que modo ele reconstruiria o mundo, respondeu: “Começaria por me reconstruir. O mundo somos todos nós, responsáveis, um a um, um por um, pelo que fizemos do mundo. Só depois de me reconstruir é que eu me sentiria no direito de reconstruir o mundo.”

Por Manoela Ferrari