Junho, 2021 - Edição 268

Paulo Gustavo, único

Símbolo da resistência pela arte, metáfora de todas as perdas da pandemia de Covid-19, Paulo Gustavo provocou uma revolução na comédia brasileira.

Não é apenas o eco dos aplausos e lamentos nacionais que inscrevem um marco de genialidade na trajetória do humorista, roteirista e ator Paulo Gustavo, uma das quase meio milhão de vítimas da Covid-19, no Brasil. Os números que evidenciam o seu sucesso também revelam grandeza, justificando a comoção uníssona provocada no país, à qual o Jornal de Letras se une, em luto por um artista que transcende as divergências.

A arte tem a função de nos religar com o sentido mais amplo da existência. Quando perdemos um talento do quilate do Paulo Gustavo, que conquistou fãs de todas as idades e perfis, com seus múltiplos personagens no teatro, cinema e TV, a sensação de vazio se alastra como pólvora, incendiada num cenário de tragédias sucessivas.

Metáfora de todas as perdas, símbolo da resistência pela arte, pelo afeto e pelo humor, com estilo original e inteligente, transbordando carisma e domínio de cena, Paulo Gustavo provocou uma revolução na comédia brasileira, estabelecendo um novo padrão na arte de fazer rir o país.

Seu primeiro monólogo no teatro – Minha mãe é uma peça – tornou-se um fenômeno, visto por mais de dois milhões de espectadores, além de render-lhe o Prêmio Shell, em 2006. Craque em fazer graça com situações cotidianas, criou um estilo único, responsável por uma mudança de paradigmas. Seu humor crítico, com um timing afiado, falava de questões comuns e de disfuncionalidades sociais, com leveza e criatividade ímpares, causando identificação imediata do público Os números em torno dele ultrapassavam, sempre, a casa do milhão. O roteiro da peça, adaptado para o cinema, arrastou para as salas de exibição mais de 16 milhões de espectadores, somando 212 milhões de reais em uma bilheteria sem precedentes. Continuando o sucesso do teatro, reuniu mais de 5 milhões de pessoas em torno das peças 220 Volts e Hiperativo. No mercado publicitário, seu cachê passava de 1 milhão de reais. Desde o início da pandemia, preocupou-se com o rumo da tragédia sanitária. Fez doações vultosas, sem divulgação. Ajudou profissionais do cinema, com quantias mensais, comprou cilindros de oxigênio para Manaus e destinou verbas ao projeto filantrópico Obras Sociais Irmã Dulce, na Bahia. No começo deste ano, fechou um contrato – que ainda não divulgara – com a Amazon. Seria a primeira estrela nacional a se tornar artista exclusivo da plataforma Prime Video. Especula-se que teria recebido, só de luvas, 2 milhões de reais.

Vários colegas se manifestaram, homenageando a trajetória do artista. Entre eles, a grande dama do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, que escreveu nas redes sociais: “Paulo Gustavo partiu no momento máximo de sua realização como ator, artista, como um sagrado provocador, como um ser aglutinador, um criador, um libertário. Sim, Paulo Gustavo, ‘rir é um ato de resistência’. Com sua ausência, o nosso mundo cultural/teatral ficou ainda mais pobre, nesse momento trágico que vivemos. Você é e será sempre um referencial deslumbrante como ser humano”, afirmou.

A capacidade de transitar por meios artísticos distintos, indo do palco para as telas, foi destacada pela atriz Fernanda Torres: “Ele explodiu no teatro e expandiu a influência para a televisão e o cinema. Foi um catalisador para a cultura brasileira.”

O estilo original, que deixa um grande legado para a arte de fazer rir no Brasil, foi apontado pelo colega Bruno Mazzeo, filho do saudoso humorista Chico Anysio: “Nenhum comediante dessa geração arrastou legião de fãs tão grande. Eu podia, nesse sentido, compará-lo a Oscarito, Zé Trindade e Mazzaroppi. Mas humoristas são insubstituíveis.” A atriz Mônica Martelli declarou o seu amor: “Meu irmão, eu te amo e pra sempre vou te amar. Vamos lembrar de você sempre assim. Sorrindo, criando, fazendo o Brasil gargalhar.”

“O mundo perde um gênio do humor”, escreveu Fábio Porchat, que estudou teatro na mesma sala que Paulo Gustavo.

O colega Marcelo Adnet também não economizou elogios:
“Incrédulo de a gente perder alguém tão jovem, tão talentoso, tão único, tão raro, tão importante para a cultura, para o humor. Uma pessoa tão apaixonante, tão apaixonado, exemplo para o Brasil inteiro.”

A atriz Tatá Werneck resumiu a comoção nacional, chamando atenção para a imortalidade do legado do colega: “Vai ser tão difícil ficar sem você. Mas, você indo, eu entendi: o fim não existe. Agora eu sei. Aplaudam o grande Paulo Gustavo! O maior comediante que eu já vi. Prestem atenção: não deixem essa dor ser em vão. Entendam a gravidade dessa pandemia. Usem máscara, álcool em gel, distanciamento social”, apelou em suas redes sociais.

Para o psicanalista Daniel Kuperman, “a morte de Paulo Gustavo nos recorda um tempo em que os mitos contribuíram para o incremento do sentido da fraternidade, e não para a sua dissolução”.


Perfil

Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros nasceu em Niterói, no dia 30 de outubro de 1978. Estudou teatro na Casa das Artes de Laranjeiras, no Rio, na mesma turma de Fábio Porchat.

A primeira peça da qual participou foi O surto, em que dividia a direção com Fernando Caruso, em 2004. Na ocasião, apresentou, pela primeira vez, a personagem Dona Hermínia, que marcaria sua carreira para sempre. A mãe superprotetora e hilária ganhou peça própria em 2006 e chegou ao cinema sete anos depois. Somados, os três filmes de Minha mãe é uma peça venderam mais de 26 milhões de ingressos entre 2013 e 2020. O terceiro filme teve a maior arrecadação da história do cinema brasileiro, com R$ 182 milhões de bilheteria. Como forma de retribuir toda a contribuição da mãe para sua carreira, Paulo Gustavo ainda criou a peça Filho da mãe, na qual dividia o palco com Dona Déa para cantar e contar histórias.

Além do sucesso de Dona Hermínia, o ator se destacou pelos filmes Minha vida em Marte (2018) e Os homens são de Marte... e é para lá que eu vou (2014), nos quais contracenou com a atriz e amiga Mônica Martelli, interpretando o personagem Aníbal, em ambas as comédias. Na TV, apresentou, em 2011, o programa 220 Volts, do Multishow. Dois anos depois, no mesmo canal, passou a integrar o elenco de Vai que cola, vivendo o malandro Valdomiro Lacerda. O personagem foi um sucesso, também na adaptação para o cinema, em 2015. Ainda no Multishow, protagonizou, ao lado de Katiuscia Canoro, a série A vila. Na produção, interpretou o ex-palhaço Rique. O ator foi o apresentador de várias edições do Prêmio Multishow.


Livro

Paulo Gustavo escreveu um livro. E não foram apenas os textos das peças ou o roteiro dos filmes. O livro traz histórias inéditas de Dona Hermínia, a mãe que encantou, emocionou e apaixonou o Brasil. Publicado pela editora Objetiva, em 2015, a obra reúne, além de histórias, fotos e ilustrações de Paulo Gustavo como Dona Hermínia. São textos inéditos escritos com a colaboração de Ulisses Mattos e Fil Braz. Em sua estreia na literatura, Dona Hermínia – ou melhor, Paulo Gustavo, seu criador – fala sobre sexo, dietas e religião, dá conselhos de como criar os filhos, explica a antipatia que tem por Freud e sua “mania de colocar tudo que é culpa na mãe”, mostra como navegar na internet e faz seu guia de viagens. E, ao contrário dos manuais que ensinam como segurar o marido, conta os segredos para não perder o ex.

Com um estilo de humor acessível, baseado em cenas familiares e cotidianas, um dos artistas mais populares do país, criador de personagens inesquecíveis, morreu no dia 4 de maio de 2021, por complicações do Covid-19.

Paulo Gustavo deixou o marido, o médico Thales Bretas, e dois filhos pequenos, Gael e Romeu, além do pai, Júlio Marcos, da irmã, Juliana Amaral, e da mãe, Déa Lúcia Amaral.

Toda a trajetória do artista, cuja dimensão transbordava potência e simbolismo, – com a obra se confundindo com a própria existência – confirma a frase poética do saudoso Ferreira Gullar: “A Arte existe porque a vida não basta.”



Por Manoela Ferrari