Maio, 2021 - Edição 267

Poesias completas de Machado de Assis

É inesgotável a riqueza que caracteriza a obra dos gênios. O volume de interpretações e análises em torno da obra machadiana justifica o milagre da sua permanência. Nenhum outro escritor brasileiro foi tão estudado quanto Machado de Assis (1839-1908). Sua vasta produção, em constante movimento, se reinventou em vários momentos. Destemido, talentoso, criativo e profícuo, percorreu caminhos inéditos, explorando todos os gêneros literários.

Com destaque absoluto na prosa, seus romances revelam a condição humana. O olhar que o Patrono da Academia Brasileira de Letras dirige às atitudes e às relações interpessoais demonstra largo entendimento de nossa alma. Através de sua literatura, passamos a ter um instrumento que nos dá uma visão diferenciada da existência. Machado foi também o mais perfeito autor de outros dois gêneros fundamentais de nossa literatura: o conto e a crônica. Em nenhum dos três foi superado. Isso, talvez, explique por que o seu “lado poeta” é considerado “menor”.
Mas há quem afirme que poucos versos na nossa língua têm a emoção dos dedicados ao grande amor de sua vida – a esposa Carolina. Uma de suas últimas publicações em vida, a coletânea Poesias Completas, editada pela Livraria Garnier, em 1901, está completando 120 anos. A intenção, na época, de reunir, num único volume, o conjunto de seus quatro livros de poemas (Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais) era trazer ao grande público a obra poética da juventude de um dos maiores escritores de sua geração.

A obra teve grande repercussão na época, embora Machado tivesse resistência em publicá-la. Ele mesmo era crítico a seu próprio trabalho poético. Silvio Romero fez-lhe rasgados elogios, vaticinando que Machado era a mais alta figura da literatura brasileira. Carlos Magalhães de Azeredo sentiu “emoções profundas”, especialmente nos poemas do último período, e elogiou sua estética primorosa.

Após a morte do escritor, diversos e cuidadosos pesquisadores – merecendo destaque o acadêmico Raimundo Magalhães Jr., entre outros, passaram a estudar a sua obra poética. Examinaram jornais e revistas (e mesmo documentos particulares) do século XIX, levantando muitos textos “desprezados”, na época, e os fizeram integrar às poesias machadianas, oferecendo preciosas notas de esclarecimentos, tanto das origens e publicação, quanto de problemas de linguagem, cortes, modificações e dúvidas. Quando reuniu os primeiros três livros, Crisálidas (1864), Falenas (1870) e Americanas (1875), incluindo o quarto, Ocidentais, em suas Poesias Completas (1901), Machado de Assis eliminou daqueles três primeiros livros diversos poemas.

Com o passar dos anos, mudou a predileção de Machado por determinados versos e maneiras de usá-los. Ao preparar o livro para publicação, ele excluiu das três primeiras coleções uma quantidade considerável de poemas: de Crisálidas, dezesseis foram excluídos, além de um fragmento do poema Versos a Corina; de Falenas, nove foram excluídos; e de Americanas, apenas um. A poesia excluída só voltou a ser integrada ao volume das Poesias completas em 1937, pela editora W. M. Jackson Inc., por ocasião de sua quarta edição (primeira da W. M. Jackson). Outra importante edição das Poesias Completas foi a de 1976, feita pela Comissão Machado de Assis com o propósito de estabelecer- -lhe criticamente o texto. Essa edição traz todos os poemas excluídos ao final de cada livro na ordem em que apareceram originalmente.
Crisálidas foi o primeiro livro de poesias publicado por Machado. Trata-se do livro mais lírico. Sobre isso, afirmou Lúcia Miguel Pereira: “Fiado na impersonalidade da poesia lírica, Machado de Assis se expandia, contava os seus sofrimentos, os seus sonhos, as suas dúvidas.”


Falenas foi publicado seis anos após Crisálidas, em 1870. Estudiosos afirmam que esse segundo livro “já tem outro tom”, e representa um progresso com relação a Crisálidas. A crítica costuma apontar um aprimoramento no apuro formal. A preocupação com as formas tornou-se mais evidente. Segundo o estudioso Cláudio Murilo Leal, o aperfeiçoamento de Falenas não se restringiu ao aspecto formal: “Nessa obra, os poemas atingem um mais alto nível de realização […] também quanto ao tratamento dos temas, cada vez mais reflexivos e universais.” O terceiro livro, Americanas (1875), tem sido considerado pelos especialistas uma obra “indianista”. O que dá unidade ao livro são os assuntos “americanos”. Um deles, Cantiga do rosto branco, é tradução de um poema de indígenas norte-americanos. Esse poema foi excluído do livro nas Poesias Completas, o que resultou num volume de assuntos exclusivamente “brasileiros”.

Se a medida dos versos fosse tomada como critério único para avaliação das exclusões feitas por Machado de Assis, poderíamos dizer que, ao poeta maduro, desagradaram os versos longos (de arte maior) escritos na juventude. Os versos breves (de arte menor), aparentemente, ainda lhe pareciam corretos, em 1901. As razões da rejeição, porém, não se vinculam exclusivamente a questões métricas. Outros aspectos e outras dimensões da composição poética teriam de ser levados em consideração, se se pretendesse explicar as escolhas do autor.


O próprio poeta, em carta a seu amigo Carlos Magalhães de Azeredo, deu as razões (não métricas) pelas quais excluiu de sua obra um poema (o “Menina e moça”, de Falenas). As cartas de Machado de Assis, como suas crônicas e os prefácios de livros que escreveu, fazem parte do material em que se pode buscar a compreensão plena de sua crítica literária.

Do ponto de vista da versificação, pode-se dizer que, em Americanas, o poeta alcançou o seu patamar mais alto e definitivo. Manuel Bandeira, apesar de reconhecer nos dois primeiros livros de Machado “certa elegância nova no cuidado da forma, tanto na linguagem como na metrificação e nas rimas”, assinalou certo avanço no terceiro livro: “Esse apuro torna-se mais acentuado nas Americanas”, afirmou.

Em Ocidentais (1880), o apuro da forma poética se estabeleceu por completo. Segundo Cláudio Murilo Leal, no quarto livro, Machado de Assis torna-se “possuidor de uma invejável maestria como artesão de seu instrumento linguístico e poético”. Outra novidade da obra é que “a lírica amorosa desaparece e cede lugar ao poema filosófico ou de caráter introspectivo”. Ocidentais é uma obra de grande relevância para o entendimento da poesia brasileira na virada do século XIX para o XX. De Machado, no Brasil, já se escreveu tudo. Ou quase tudo. Penso, porém, que há sempre lugar para renovar a abordagem pedagógica dos seus textos. Em seu estilo e em sua cuidadosa estrutura vocabular, Machado ensinava. Uma conversa machadiana é pautada pela calma, olho no olho, como quem aponta, com singeleza, “olhem como nós somos”. Junto com suas afirmações, há, simultaneamente, o espanto e o encantamento com o mundo. Um olhar pedagógico refinado, de quem nos enxergava por dentro, esmerando-se em nos mostrar de que maneira podemos nos tornar melhores. Como fazem os bons mestres: não apenas ensinam: inspiram.



À Carolina *

Querida! Ao pé do leito derradeiro,
em que descansas desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração de companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro...
Trago-te flores – restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados;
que eu, se tenho, nos olhos mal feridos,
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.

* Escrito por Machado de Assis em 1904 (depois de ter sido publicada a primeira edição das Poesias Completas), à época da morte de sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais, o soneto À Carolina é considerado a melhor peça de sua obra poética. Os versos foram gravados no túmulo de Machado e Carolina, no Mausoléu da ABL, transferido pelo presidente da instituição, Arnaldo Niskier, no dia 21 de abril de 1999. * Escrito por Machado de Assis em 1904 (depois de ter sido publicada a primeira edição das Poesias Completas), à época da morte de sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais, o soneto À Carolina é considerado a melhor peça de sua obra poética. Os versos foram gravados no túmulo de Machado e Carolina, no Mausoléu da ABL, transferido pelo presidente da instituição, Arnaldo Niskier, no dia 21 de abril de 1999.

Por Manoela Ferrari