Abril, 2021 - Edição 266
A matemática na arte de João Candido Portinari

Um trabalho de amor e técnica. Foi assim que o saudoso crítico
Antonio Callado definiu o Projeto Portinari – iniciativa voltada para o resgate e disponibilização ao público (por meio do levantamento, organização, pesquisa e digitalização) da imensa obra de Candido Portinari
(1903-1962), um dos maiores pintores brasileiros.
O sentido real do projeto, fundado em 1979, é assim definido por
seu fundador e diretor, João Candido Portinari (1939), único descendente do célebre pintor: “Embora voltado para o resgate sistemático,
minucioso e abrangente de uma obra, uma vida e uma época, ele não se
posiciona como um movimento saudosista ou encomiástico. Seu sentido real está em converter o passado em um fermento para o futuro.”
João Candido deixou o Brasil em 1957, aos 18 anos de
idade, para estudar Matemática, na França. Ao fim de um período de 10 anos de estudos no exterior, voltou, a convite do professor Antonio César Olinto, munido
de um Ph.D. do Massachusetts Institute of Technology e do
diploma de Engenheiro de Telecomunicações, conferido pela
École Nationale Supérieure des Télécommunications, em Paris
(entrara na Télécom via concurso nacional, após ter cursado, como
aluno interno, o Lycée Louis-LeGrand). Veio com a missão de ajudar
Olinto a criar o Departamento de Matemática da PUC-Rio, do qual foi
o primeiro diretor, em 1968, e onde permaneceu, em regime de tempo
integral e dedicação exclusiva, até
iniciar o Projeto Portinari, em 1979.
Dezessete anos após a morte do pai, João Candido acompanhava,
com tristeza, que a memória (e os famosos murais do artista) estavam se
deteriorando. O Museu de Arte Moderna de Nova York possuía, naquela
época, mais informações sobre Portinari do que todas as instituições
brasileiras reunidas. Mais de 95% da obra do maior pintor brasileiro
contemporâneo era inacessível ao público, guardada em coleções particulares.
Não se conhecia o paradeiro da maioria. Os livros publicados
sobre a sua produção estavam todos esgotados, sem perspectivas de
reedição. Nunca havia sido realizada, até então, uma exposição retrospectiva,
não existia catalogação e nenhum museu brasileiro possuía
uma amostra minimamente representativa da grande produção portinariana.
Com sua morte tragicamente prematura, aos 58 anos, Portinari
deixou um extraordinário legado de mais de cinco mil obras – murais,
afrescos e painéis, pinturas, desenhos e gravuras – que representam
uma ampla síntese crítica de todos os aspectos da vida brasileira de seu
tempo.
Para avaliar o papel que desempenhou em sua geração, basta
recordar as palavras de Carlos Drummond de Andrade, em carta ao
pintor por ocasião do sucesso de sua exposição em Paris, em 1946: “Foi
em você que conseguimos a nossa expressão mais universal, e não apenas pela ressonância, mas pela natureza mesma do seu gênio criador,
que ainda que permanecesse ignorado ou negado, nos salvaria para o
futuro.”
Desde o seu primeiro sucesso internacional, em 1935, com
o Prêmio Carnegie, nos EUA,
Portinari foi o pintor brasileiro a
alcançar maior projeção internacional. Seguiram-se os três grandes painéis
para a Feira Mundial
de Nova York (1939), sua exposição individual no MoMa de Nova
York (1940), os quatro painéis para
a Biblioteca do Congresso norte-
-americano, em Washington, a
publicação, pela Universidade de
Chicago, do primeiro livro sobre
sua obra (1941), o impacto da exposição na Galerie Charpentier, em
Paris (1946), a exposição itinerante
em Israel (1956) e, finalmente, seus
monumentais painéis Guerra e Paz
para a sede da ONU , em Nova York.
O primeiro local para iniciar os trabalhos de levantamento, pesquisa, organização e acesso às informações sobre a obra de Portinari foi
cedido pelo professor Américo Jacobina Lacombe, então presidente da
Fundação Casa de Rui Barbosa. Depois de um ano, a equipe cresceu e o
Projeto se mudou para a sede atual, no Solar Grandjean de Montigny, na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Nos seus 42 anos de atividade, o Projeto Portinari levantou mais
de 5 mil pinturas, desenhos e gravuras atribuídos ao pintor, além de
cerca de 25 mil documentos sobre sua obra. No Programa de História
Oral, foram registrados vários depoimentos, entre eles, os de Carlos
Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Luís Carlos
Prestes, Afonso Arinos, Antonio Callado, Radamés Gnatalli, Francisco
Mignone, Maria Clara Machado, Enrico Bianco, Augusto Rodrigues,
Pietro Maria Bardi, além de amigos e parentes que, com seu testemunho, contribuíram para aprofundar a compreensão da época e das preocupações de sua geração
No arquivo de correspondências, o Projeto conta com mais de seis
mil cartas, entre as quais se destaca as enviadas por Portinari a Mário de
Andrade, cedidas pelo Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade
de São Paulo. O acervo de fotografias históricas, filmes e recortes de
periódicos (mais de dez mil), livros, monografias, textos e memorabilia
variada completam um fecundo itinerário de acesso a mais de quatro
décadas de fundamental importância para a vida do país.
O levantamento dessas obras e documentos levou João Candido
e a equipe do Projeto Portinari a percorrer todo o território brasileiro
e mais de 20 países das três Américas, da Europa e do Oriente. Foram
descobertas telas como o Baile na Roça, a primeira do artista
com temática brasileira, pintada aos 20 anos. O filho conta que
Portinari a vendeu em 1924 e, mais tarde, tentou recuperá-la,
mas morreu sem a emoção do reencontro. Ou um pequeno
retrato, encontrado com um colecionador carioca, com uma
inscrição do próprio punho: “Meu primeiro trabalho.”
O Projeto Portinari foi pioneiro na utilização de processos digitais e tecnologia da informação, nas diferentes áreas de
seu trabalho. Reúne um dos mais importantes arquivos multimídia existentes sobre a história e a cultura brasileiras nas
décadas de 20 a 60.
Matemático e doutor em Engenharia de
Telecomunicações, João Candido Portinari se tornou mestre
incansável em unir a tecnologia a serviço da arte. Sua equipe
foi buscando na prática, com dedicação e afinco, soluções para
todos os obstáculos, que iam desde problemas técnicos ligados
à captura digital das imagens, fidelidade de sua reprodução à
indexação e catalogação. Os desafios dependiam do progresso
tecnológico. Ao fato de o Projeto ter nascido na universidade,
no contato diário com os seus diversos departamentos, ele
atribui a razão de ter se tornado uma ponte entre as atividades artístico-culturais e aquelas de ciência e tecnologia: “um
espaço inter e transdisciplinar, transversal às atividades
de muitos departamentos”, afirma. Entre os vários
livros de sua autoria
sobre a vida e a obra
do pai, destaca-se o
Menino de Brodowski. Em 2005, foi laureado com o Prêmio Jabuti de
Literatura na categoria “Arquitetura e Urbanismo, Comunicação e Artes”
e ganhou também o Prêmio Sérgio Milliet. Um ano antes, lançou o
Catálogo Raisonné da obra completa de Candido Portinari.
No primeiro artigo que escreveu sobre o Projeto Portinari, publicado em agosto de 1979, revelou ao público sua prosa firme, onde as
palavras surgem com a potência lírica com que nos tocam os poetas.
Mais de quatro décadas depois, reparem a atualidade do texto: “Tornase evidente para um número crescente de pessoas que, se a ciência e
a tecnologia não estiverem subordinadas a uma finalidade humana,
elas podem nos conduzir à destruição do meio ambiente, às guerras,
à alienação cada vez maior de um homem que, manipulado, condicionado, massificado e impotente, assiste à falência das esperanças
do Renascimento e da promessa cartesiana de, pelo desenvolvimento
científico-tecnológico, dominar a natureza, promovendo o crescimento
do homem e ampliando as suas possibilidades de explorar a própria
liberdade.”