Janeiro, 2021 - Edição 263

Centenário do patrono da educação brasileira

A pandemia do coronavírus provocou problemas sem precedentes em todo o planeta, espalhando crise econômica, política, ambiental e, sobretudo, ética. No Brasil, tivemos escancaradas feridas latentes, onde foram colocados à prova não só os direitos básicos de educação e saúde, como a própria democracia e a soberania nacional.

Num cenário com cerca de 175 mil mortes e quase 7 milhões de infectados, o país encerrou o ano letivo de 2020 com 35% (19,5 milhões) de alunos da educação básica e superior com aulas suspensas, enquanto 58% (32,4 milhões) passaram a ter aulas remotas. Na rede pública, 26% dos que tiveram aulas on-line não possuíam acesso à internet. A pandemia tem mostrado a face da desigualdade no Brasil. Os dados estatísticos demonstram que, no acesso à educação, isso não tem sido diferente.

Inseridos nesse panorama, iniciamos o ano do centenário de nascimento do Patrono da Educação Brasileira, o educador Paulo Freire (1921-1997). Nada mais oportuno do que celebrar a data, vinculando a defesa do seu legado à atual conjuntura de luta por uma sociedade mais justa e igualitária, em busca da emancipação do diálogo e da conscientização dos direitos humanos. Agraciado com cerca de 48 títulos, entre doutorados honoris causa e outras honrarias de universidades e organizações internacionais, Freire é considerado o brasileiro com mais títulos de doutorados honoris causa, sendo o escritor da terceira obra mais citada em trabalhos de ciências humanas do mundo: Pedagogia do Oprimido.

Na visão do educador, escritor e filósofo pernambucano, a leitura (e, no mesmo sentido, a escrita) somente faz sentido se for acompanhada da capacidade de perceber o mundo, de reconhecer os papéis desempenhados por cada um na estrutura social. Seu método de ensino agia com base nas palavras que faziam parte do cotidiano. O foco não era no conteúdo ensinado, mas no processo de aprendizagem.

Sua tentativa de levar uma conscientização política e de classe para os educandos talvez tenha sido o fator que mais despertou a ira de setores conservadores da época, responsáveis por extinguir o Plano Nacional da Alfabetização e pelo exílio de 15 anos.

A obra de Paulo Freire é profundamente marcada pela insistência de levantar-se um novo tipo de educação, capaz de dar autonomia às classes dominadas por meio do diálogo e de uma educação emancipadora.

Para quem simpatiza com suas ideias, essa tarefa é necessária para a criação de um novo Brasil, mais justo e igualitário. Para quem discorda, há, em geral, o medo de que ela seja a “cartilha” para fazer o que setores conservadores têm chamado de “doutrinação marxista nas salas de aula”. Essa acusação, sustentada nos dias atuais por grupos políticos ligados à extrema-direita, foi a mesma que o condenou, em 1964.

Preso e exilado pelo regime militar, foi inicialmente para o Chile, onde coordenou projetos de alfabetização de adultos, pelo Instituto Chileno da Reforma Agrária, por cinco anos. Em 1969, foi convidado a lecionar na Universidade de Harvard. Em 1970, foi consultor e coordenador emérito do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), com sede em Genebra, na Suíça. Até o seu retorno ao Brasil, em 1980, permitido pela Lei da Anistia, Freire fez viagens a mais de 30 países, prestando consultoria educacional e implementando projetos de educação voltados para a alfabetização, para a redução da desigualdade social e para a garantia de direitos.

De volta a São Paulo, passou a dar aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade de Campinas (Unicamp). Entre 1988 e 1991, foi nomeado secretário de educação do município. Morreu no dia 2 de maio de 1997, aos 76 anos, após passar por uma angioplastia. Em todo o mundo, cerca de 350 escolas e instituições levam o seu nome.>

Coerência


É justo que se façam presentes no centro das homenagens que serão realizadas até setembro de 2021, mês de seu nascimento (19/09), mobilizações por direitos básicos de cidadania, democracia e soberania, tanto quanto lutas antirracistas e feministas, além da defesa do acesso irrestrito à educação.

O autor da Pedagogia do Oprimido defendia, como objetivo principal da escola, ensinar o aluno a “ler o mundo” para transformá-lo. Com atuação e reconhecimento internacionais, desenvolveu esse pensamento pedagógico assumidamente político. Para Freire, o objetivo maior da educação é conscientizar o aluno. Isso significa, em relação às parcelas desfavorecidas da sociedade, levá-las a entender sua situação de oprimidas e agir em favor da própria libertação.

Ao propor uma prática de sala de aula que pudesse desenvolver a criticidade dos alunos, condenava o ensino oferecido pela ampla maioria das escolas (“escolas burguesas”), que ele qualificou de “educação bancária”. Nelas, o professor age como quem “deposita conhecimento num aluno apenas receptivo”. O saber é visto como uma doação dos que se julgam seus detentores. Trata-se, portanto, de uma escola alienante.

Um conceito a que Paulo Freire deu a máxima importância foi o da coerência. Para ele, não é possível adotar diretrizes pedagógicas de modo consequente sem que elas orientem a prática, até em seus aspectos mais corriqueiros: “As qualidades e virtudes são construídas por nós no esforço que nos impomos para diminuir a distância entre o que dizemos e fazemos”, defendeu o educador.



Realidade atual


A reinvenção do pensamento de Paulo Freire (“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”) se dará na medida em que se colocar em contundente diálogo com a realidade atual. O grande número de estudantes que tiveram as aulas suspensas no ano passado e a percepção de queda da qualidade do ensino brasileiro comprovam que os impactos da pandemia na educação são severos e exigem medidas articuladas entre os sistemas de ensino no país.

Não são poucos os relatos de estudantes sem equipamentos ou conexão à internet, famílias em situação econômica cada vez mais frágil, professores com crescentes dificuldades em manter os alunos engajados nas aulas remotas e pais tanto ansiosos quanto temerosos pela volta às aulas presenciais ainda sem um planejamento de aplicação da tão aguardada vacina.

O resultado dessa combinação é o crescente temor, entre educadores e pesquisadores, de que as circunstâncias impostas pela pandemia façam com que mais estudantes desistam da escola. A evasão escolar é um problema crônico, com alto custo humano, social e econômico para o Brasil. Dos quase 50 milhões de brasileiros entre 14 e 29 anos, mais de 20% – ou seja, 10,1 milhões de jovens – não completaram alguma das etapas da educação básica (que engloba os ensinos fundamental e médio), segundo pesquisa divulgada pelo IBGE, no final de 2020. De cada jovem que abandona a escola, o Brasil perde R$ 372 mil reais por ano. No total, o custo anual da evasão escolar é de R$ 214 bilhões, ou 3% do PIB (Produto Interno Bruto), com base na redução das possibilidades de emprego, renda e retorno para a sociedade das pessoas que não concluem a educação básica.

Paulo Freire acreditava na educação como ferramenta de transformação social, como forma de reconhecer e reivindicar direitos. “Compreender o mundo para transformá-lo” significa, sobretudo, compreender e viver a ética, a solidariedade e implementar as ideias “freireanas” no cotidiano das comunidades, instituições e movimentos sociais

Mobilização continental


No início de um novo ano, apesar das dificuldades, não é tempo de desânimo. É preciso, no entanto, estar atento ao tamanho dos desafios impostos pelo destino para melhor enfrentá-los. A crise certamente não será eterna. Em algum momento ela passará e devemos estar preparados para a retomada de todas as atividades. Setembro é o mês das jornadas latino-americanas de luta em defesa da educação pública livre, laica e emancipatória, contra a mercantilização e a privatização: em direção ao centenário do nascimento de Paulo Freire.

Chamada pela International Education for LatinAmerica (IEAL) e pela Rede Latino-americana de Estudos sobre o Trabalho Docente (RED ESTRADO) em 2017, essa mobilização continental defende a memória de Paulo Freire, patrono latino-americano da educação. Nesse ano do centenário, no dia 19 de setembro, a América Latina se reunirá em Recife, para lembrar e manter vivo o legado do Professor Freire.

Desde 2017, a IEAL e a RED ESTRADO realizam a Conferência Latino-americana em defesa da educação pública, laica, gratuita e emancipatória para o centenário de Paulo Freire, convocando todos os seus afiliados a realizarem eventos, dias de reflexão e luta, bem como publicações nas redes sociais em memória do legado do educador. Para isso, a IEAL disponibilizou materiais de campanha nas redes sociais para distribuição gratuita. Compostos por 13 imagens e 8 vídeos otimizados para Facebook e Instagram, podem ser usados da mesma forma no Twitter. Tanto as imagens quanto os vídeos buscam resgatar as ideias de Freire em sua própria voz, utilizando citações textuais de livros e entrevistas.

Em 2019, atendendo convocação do Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe (CEAAL), mais de 40 entidades representativas de diferentes segmentos se organizaram para lançar a Campanha Latino-americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire, produzindo um manifesto com um conjunto de justificativas. Entre elas, a da necessidade de se defender o legado do grande educador. Desde então, inúmeras atividades pedagógicas e culturais em homenagem a Freire vêm acontecendo.

Promover atividades em comemoração a essa data é o mínimo que podemos fazer para homenagear o célebre educador.


Por Manoela Ferrari