Setembro, 2020 - Edição 259

Elis, o fino da bossa

Uma das cantoras mais populares da história da música brasileira estaria completando 75 anos em 2020, se não tivesse morrido tão precocemente, aos 36 anos. Intensa e visceral, Elis Regina foi protagonista não só de uma fase da cena musical do país, como também da própria trajetória. A manhã do dia 19 de janeiro de 1982 entrou para a história da MPB como o dia em que o Brasil perdeu um de seus maiores talentos. Elis Regina Carvalho Costa nasceu em Porto Alegre, no dia 17 de março de 1945. Há duas versões para a história sobre a escolha do nome da pequena gaúcha, filha de Romeu Costa e Ercy Carvalho. Segundo a própria cantora relatou em entrevista, seu nome tem origem numa personagem de romance que sua mãe lia na época do nascimento:

“Miss Elis.” Sob a argumentação de que Elis poderia ser nome tanto de homem quanto de mulher, o pai sugeriu que houvesse outro nome feminino entre “Elis” e o sobrenome. Em homenagem à prima Regina, nascida na semana anterior, ficou Elis Regina Carvalho Costa. A outra versão diz que o “Regina” apareceu porque a mãe queria também um nome bíblico. A origem etimológica “regina” vem do latim “rainha” – título atribuído a Virgem Maria.

Independente de superstição ou questão religiosa, um fato é certo: o nome de batismo foi premonitório. Indica voluntarismo, soberania e realeza: características que nunca faltaram à “Pimentinha”, como ficou conhecida anos depois, em decorrência de seu temperamento forte e de suas frases “ardidas”.

Pela competência vocal, musicalidade e presença de palco, Elis Regina foi considerada por muitos críticos a melhor cantora popular do Brasil, dos anos 1960 ao início dos anos 1980, comparada a cantoras como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday. Com os sucessos de Falso Brilhante (1975-1977) e Transversal do Tempo (1978), inovou os espetáculos musicais no país.

Apelidada de Lilica na infância, Elis foi bem precoce na música. Aos três anos, já imitava os sambas-canção que tocavam no rádio da época, cantados por Emilinha Borba, Cauby Peixoto, Marlene, Francisco Alves e sua paixão, Ângela Maria.

Aos sete anos, quando nasceu o irmão Rogério, sua mãe a levou à Rádio Farroupilha para participar de um programa chamado “Clube do Guri”, apresentado pelo radialista Ari Rego. Em 1957, passou a fazer parte das crianças que se apresentavam regularmente, de modo amador, sem cachê. Como recompensa, uma caixa de chocolates do patrocinador. No ano seguinte, com 13 anos, iniciou a sua carreira profissional, contratada por Maurício Sirotsky Sobrinho para a Rádio Gaúcha. Passou a ser conhecida como “a estrelinha da Rádio Gaúcha”. Nesse mesmo ano, foi eleita, por concurso, a “Melhor Cantora do Rádio Gaúcho”.

Em 1961, Wilson Rodrigues Poso, gerente comercial do selo Continental – pertencente à gravadora GEL, com sede no Rio de Janeiro, ofereceu um contrato padrão para dois discos aos pais de Elis: sem cachê, mas com divisão dos resultados das vendas. A moda da época era cantar rock. Carlos Imperial – então radialista de sucesso – foi chamado para produzir o álbum de estreia da cantora.

O primeiro disco, Viva a Brotolândia, procurou repaginar a imagem de Elis como uma cantora de rock, “para a juventude”. Apesar da crítica favorável, o álbum encontrou vendas decepcionantes. No ano seguinte, em 1962, a gravadora trocou o produtor (Diogo Mulero) e, novamente, modificou o repertório da cantora, que passou a interpretar boleros em Poema de Amor. A intenção era popularizá-la, mas as vendas continuaram decepcionantes.



Sem contrato de gravação, que já havia sido cumprido com o lançamento do segundo disco, Elis continuou com seu emprego na Rádio Gaúcha. Em 1963, outro representante de gravadora foi procurara família. Dessa vez, era Airton dos Anjos, da Discos CBS. Foi proposto um contrato muito parecido com o primeiro: dois discos que seriam lançados naquele ano, sem cachê. E lá foi Elis para o Rio de Janeiro, novamente, gravar o seu terceiro LP. Para os dois novos discos, o produtor escolhido, Astor Silva, resolveu tentar transformá-la em cantora de sambas e versões popularescas. Assim, foram lançados Elis Regina e O Bem do Amor, novamente com vendas baixas.

De volta a Porto Alegre, Elis continuou trabalhando na rádio e fazendo apresentações pelo sul do país. Em 1963, no final de um show coletivo, no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, foi procurada por Armando Pittigliani, produtor do maior selo nacional, em férias na cidade. A partir daí, decidiu mudar-se definitivamente para o Rio de Janeiro, onde estava praticamente toda a indústria fonográfica nacional. A família chegou ao Rio na manhã do dia 31 de março de 1964. Com sua experiência no rádio, Elis conseguiu rapidamente um emprego na TV Rio. Suas aparições, embora não rendessem cachês significativos, a popularizavam para um público maior.

A potência do seu talento logo chamou a atenção dos produtores e jornalistas Renato Sérgio e Roberto Jorge, que produziram o primeiro show da cantora no Rio. O espetáculo Sosifor Agora foi um sucesso no Bottle’s, boate que fazia parte do famoso “Beco das Garrafas”. No espetáculo, Elis cantou samba jazz, acompanhada pelo Copa Trio (Dom Salvador, no piano; Miguel Gusmão, no contrabaixo; e Dom Romão, na bateria). Com a ajuda do famoso coreógrafo Lennie Dale, aprendeu a mexer os braços como se estivesse nadando no ar, ou como as hélices de um helicóptero.

Um desentendimento com os produtores do show no Bottle’s encerrou a temporada e abriu oportunidade para o bar vizinho: o Little Club, produzido por Miele e Bôscoli. Assim como na temporada anterior, Elis faltava às apresentações para fazer shows em outras praças, o que levou a outra briga. A partir de então, a cantora nunca mais se apresentou no Beco. Cumprindo atribulada agenda de shows em São Paulo, onde sua carreira decolou, Elis Regina mudou-se para a capital paulista, em fevereiro de 1965. Despontava como a primeira grande artista a surgir dos festivais de música na década de 1960.



Descolava-se da estética da Bossa Nova pelo uso de sua extensão vocal e de sua dramaticidade. Inicialmente, seu estilo era influenciado pelos cantores do rádio, especialmente Ângela Maria. Depois dos quatro LP’s gravados sem grande sucesso, foi a maior revelação do festival da TV Excelsior, em 1965, quando cantou Arrastão, de Vinícius de Moraes e Edu Lobo, vencendo o I Festival de Música Popular Brasileira. Na ocasião, também foi premiada com o troféu Berimbau de Ouro de melhor intérprete. Nesta época, compôs sua primeira e única música – Triste Amor que Vai Morrer – em parceria com o jornalista e radialista Walter Silva.

Logo veio o título de primeira estrela da canção popular brasileira, quando passou a comandar, ao lado de Jair Rodrigues, um dois mais importantes programas de música popular brasileira, O Fino da Bossa. O programa ficou no ar até 1967 (TV Record, Canal 7, SP) e originou três discos de grande sucesso. Um deles, Dois na Bossa, foi o primeiro disco brasileiro a vender um milhão de cópias. Seria dela agora o maior cachê do show business.

Um dos grandes sucessos dessa época e ao longo de toda a carreira de Elis Regina foi a canção Upa neguinho, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, que fez parte do musical Arena conta Zumbi, dirigido por Augusto Boal, em 1965. Recordista de vendas pela gravadora Philips, cantou no Mercado Internacional de Discos e Edições Musicais (MIDEM), em Cannes, em janeiro de 1968, direcionando sua carreira para o reconhecimento também no exterior. Em 1969, gravou e lançou, internacionalmente, dois LPs: um com o gaitista belga Toots Thielemans, em Estocolmo, e Elis in London.

Em 1967, casou-se com Ronaldo Bôscoli, então diretor do O Fino da Bossa, com quem teve João Marcello Bôscoli (1970). Durante os anos 1970, aprimorou a técnica e domínio vocal. A partir de 1972, Elis começou um relacionamento com César Camargo Mariano, com quem teve dois filhos: Pedro Camargo Mariano (1975) e Maria Rita Camargo Mariano (1977). Ficaram casados até 1981, em uma das mais bem-sucedidas parcerias da Música Popular Brasileira.

Em 1974, gravou com Antônio Carlos Jobim, o álbum Elis & Tom, considerado um dos melhores LP’s da história da música popular brasileira. No ano seguinte, o espetáculo Falso Brilhante (que originou um disco homônimo) tornou-se um dos mais bem-sucedidos espetáculos da história da música nacional e um marco definitivo da carreira. Primeira pessoa do país a inscrever a própria voz como se fosse um instrumento, na Ordem dos Músicos do Brasil, Elis cantou muitos gêneros: da MPB, passando pela bossa nova, samba, rock e jazz. Interpretou canções célebres, como Madalena, Águas de Março, Atrás da Porta, Como Nossos Pais, O Bêbado e a Equilibrista, entre outros sucessos.

Criticou muitas vezes a ditadura brasileira, nos difíceis “Anos de chumbo”, quando muitos músicos foram perseguidos e exilados. A crítica tornava-se pública em meio às declarações ou nas canções que interpretava. Em entrevista, no ano de 1969, afirmou que o Brasil era governado por gorilas. A popularidade a manteve fora da prisão, mas foi obrigada pelas autoridades a cantar o Hino Nacional durante um espetáculo em um estádio, fato que despertou a ira da esquerda brasileira. Sempre engajada politicamente, participou de uma série de movimentos de renovação política e cultural, com voz ativa da campanha pela Anistia de exilados brasileiros.

Em 2013, foi eleita a melhor voz feminina da música brasileira pela Revista Rolling Stone. Citada na lista dos maiores artistas da música brasileira, ficou em 14ª posição, sendo a mulher mais bem colocada. Em novembro do mesmo ano, estreou um musical em sua homenagem: “Elis, o musical.”

Elis nunca deixou de ocupar lugar de destaque, tanto na música quanto no noticiário, como podemos conferir no exemplar da Manchete, do dia 22 de janeiro de 1983, um ano após a sua morte. Num belo texto de Renato Sérgio, leem-se várias frases célebres da cantora, atualíssimas: “Tomei parte de uma geração de músicos muito mais atentos. Nós ainda não tínhamos sido vítimas da assepsia cultural do país”, ou ainda “No Brasil, a inspiração é americana, mas a organização é macunaímica” e “Viver é melhor do que sonhar”. A cantora morreu precocemente aos 36 anos, no auge da carreira, causando forte comoção no país. Embora tenha havido controvérsias e contestações quanto à causa da morte, os exames comprovaram que o consumo de cocaína associado a bebida alcoólica provocou uma parada cardíaca.

Em agosto de 1997, Elis foi agraciada, a título póstumo, com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal. Em 22 de setembro de 2005, inaugurou-se, na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, um espaço memorial para abrigar o Acervo Elis Regina. Em 2015, foi homenageada pela Escola de Samba Vai-Vai, com o enredo “Simplesmente Elis - A Fábula de Uma Voz na Transversal do Tempo”.

Em 2016, foi lançado o filme Elis, tendo Andreia Horta como a famosa intérprete. Toda a trajetória da cantora foi contextualizada na minissérie Elis - Viver é melhor que sonhar, disponibilizada na Globoplay, onde se pode conferir, ao longo de quatro capítulos, o carisma e a genialidade de um mito. 38 anos após a sua morte, Elis continua viva, eternizada por sua voz transcendente e pela memória coletiva.

Por Manoela Ferrari