Agosto, 2020 - Edição 258

Memórias da Quarentena

A literatura costuma tomar mais tempo do que outras artes para refletir sobre o tempo. Com o isolamento forçado durante a pandemia do novo coronavírus que assolou o país, vários trabalhos literários de fôlego foram tomando forma.

Lançando luzes sobre as suas próprias memórias, sem se esquivar dos momentos de sombra, o acadêmico Arnaldo Niskier registrou em texto várias lembranças de sua trajetória, incluindo a experiência de muitos anos de magistério, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde ele se tornou doutor em Educação e professor titular de História e Filosofia da Educação, depois de ter passado pelas áreas de Matemática e Administração Escolar e Educação Comparada. Trata-se de uma vivência nada desprezível, de quase 40 anos, numa instituição que segue sendo uma das principais do país.

Durante 26 anos, o acadêmico participou do Conselho Universitário da UERJ. Inicialmente, como presidente eleito do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Depois, como presidente da Associação dos Diplomados da UERJ, para a qual foi eleito e reeleito algumas vezes. Foi vice-chanceler da universidade, durante os quatro anos em que atuava também como secretário de Estado da Educação e Cultura. Nessa ocasião, ajudou a instituição, não apenas com conselhos experientes, mas também intercedendo junto aos governadores para que liberassem verbas suplementares, indispensáveis ao seu efetivo funcionamento. Primeiro professor de Desenho Geométrico do afamado Colégio de Aplicação da UERJ, valendo-se do tempo aberto pelo necessário isolamento social, Niskier escreveu 85 textos sobre algumas lembranças desse rico passado, incluindo poemas para a família e registros sobre Filosofia e Educação.



Consciente de sua busca estética a favor da fusão entre forma e conteúdo, leitor voraz desde a juventude, optou pela imersão na arte, em suas mais diversas formas. Revisitou os textos de seus filósofos preferidos, em sua farta biblioteca particular e leu inúmeros livros. Dentre eles, destaca a robusta obra Guerra e Paz, de Leon Tolstói (1828-1910). Com centenas de personagens e mais de 1.500 páginas na versão original, é considerado um dos maiores romances da história. O enredo deste clássico da literatura é incrivelmente atual, narrando a tentativa incessante de se encontrar um rumo, num mundo virado do avesso devido à guerra, mudanças políticas e caos espiritual. A angústia existencial dos personagens de Tolstói levou o professor Niskier a revisitar suas memórias. A mensagem principal da obra ressalta que, independentemente dos momentos difíceis, as crises nos fazem desabrochar e nos conduzem a inesgotáveis fontes de força e criatividade. Para além de sobreviver à atual crise mundial do novo coronavírus, importa-nos partir em busca de superação. E inovação faz parte do DNA criativo do primeiro Secretário de Ciência e Tecnologia do Brasil. O professor Niskier exerceu o cargo no governo Negrão de Lima, de 1968 a 1971, quando idealizou o Planetário do Rio de Janeiro, na Gávea, com um dos mais modernos projetores do mundo – maior legado de sua gestão.



Em paralelo aos livros que leu e releu ao longo dos meses em que foi obrigado a deixar de comparecer, presencialmente, ao Instituto Antares de Cultura e à Editora Consultor (onde é o diretor-presidente), e longe das reuniões semanais da Academia Brasileira de Letras (onde é o segundo decano), da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (onde é Conselheiro) e do CIEE-Rio (onde é presidente), acompanhou, sempre ao lado da esposa Ruth, várias séries na Netflix. Durante a exibição de uma delas – “Merlí”, sobre um professor de Filosofia – buscou a inspiração que resultou nesse livro.

Memórias da Quarentena será lançado em setembro, com o selo da Editora Consultor e concepção gráfica de Isio Ghelman. A bela ilustração da capa foi assinada por Cláudio Duarte. O número 85 representa um texto para cada ano de vida. Dividida em três partes, a obra traz lembranças de estudos relacionados à filosofia, além de sentimentos dedicados à família e conceitos de educação, três universos em que o professor Niskier sempre transitou ao longo da vida, deixando um rastro de brilho e saudades. Em tempos sombrios como os que temos vivido, sua leitura flui como um bálsamo. Sem contar o aprendizado que fica. São textos breves, carregados de lirismo, em que o leitor tem a oportunidade de passear, com leveza, entre a filosofia e a contemporaneidade, a Netflix e a Finlândia, a série do professor Merlí e os epicuristas, dos princípios da ética ao percurso de Zizek, sem perder a ternura do aconchego familiar. A impressão que se tem é a de estarmos sentados na varanda de sua casa de Teresópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, à sombra de flamboyants, ouvindo suas bem contadas histórias, no final de uma tarde ensolarada, com a brisa do vento trazendo o luar de uma noite estrelada.

Os escritos apresentam uma “miscelânea filosófica” (título de um dos artigos da primeira parte, que reproduzimos em primeira mão), trazendo à tona reflexões que vão do pensamento medieval, passando pela filosofia da Matemática, Kant, Maimônides, Descartes, Spinoza, Voltaire, Kirkgaard, Wittgenstein, Buber, Sartre, Walter Benjamin, Nietzsche, para citar apenas alguns.

Na segunda parte, afloram a poesia e a prosa lírica do acadêmico, expondo mensagens de carinho de um filho extremamente zeloso com a mãe, D. Fany, um marido eternamente apaixonado pela esposa Ruth, um genro saudoso da sogra, D. Paulina Dain Buchman, além de um avô derretido pelas netas Giovanna, Gabriela, Dora, Fernanda, Paula e Bruna. A filha Sandra N. Flanzer, psicanalista e escritora, que atualmente brilha em lives, palestrando sobre o “novo normal”, também é destaque, falando da exigência de nos reinventarmos para enfrentar o futuro pós-pandêmico. A sensibilidade do momento é realçada no artigo Uma bela família, quando a “voz” embarga com a perda do irmão querido, o advogado Odilon Niskier, vítima da Covid-19, aos 94 anos: “É o terceiro (irmão) que se vai. O primeiro foi o Sylvio, com 88 anos, enterrado no Cemitério de Butantã, em São Paulo. Era um admirável professor de Geometria Descritiva do Mackenzie e do Instituto Mauá. Deixou um belo nome no magistério de São Paulo. O segundo, há dois anos, com a idade de 89 anos, foi o também engenheiro Júlio Niskier, professor de Instalações Elétricas e Hidráulicas. Ao inesquecível Odilon, eu e a minha irmã Rachel devemos muito de nossa formação. Chegou a pagar nossos estudos quando isso se fazia necessário, como, no caso dela, no pré-vestibular de Medicina da UERJ.”

Educação



Na terceira e última parte, o livro aborda temas relacionados à educação em todo o seu amplo universo, incluindo passagens sobre o pensamento de autores como John Dewey e a nova escola, Freud e o mal-estar, Presença de Piaget, Toynbee e as civilizações, entre outros, além de recordações universitárias, acadêmicas e reflexões sobre o ensino a distância e o “dayafter”.

É fato que a literatura não cria a vacina. Nossa ciência é a Língua Portuguesa. Mas não temos dúvida de que os escritores oferecem caminhos, antídotos e remédios poderosos para enfrentar essa pandemia. Nesse sentido, a leitura de Memórias da Quarentena se torna expressamente recomendável.



Antecipamos alguns trechos inéditos do livro.

Parte I – Filosofia - Miscelânea filosófica

Ao longo da elaboração desta obra, fomos obrigados a consultar diversos trabalhos, de um belo elenco de autores que cuidaram dos diversos aspectos da Filosofia, que podemos classificar como a ciência que lida com o amor à sabedoria. Eis alguns pensamentos que brotaram desse estudo:
“Sejamos escravos da Lei para que possamos ser livres.” – Cícero
“Eduquem-se os meninos e não será preciso castigar os homens.” – Pitágoras

“Uma casa sem livros é um corpo sem alma.” – Cícero
“Nem sempre os costumes dos filósofos estão em harmonia com os seus preceitos: mas se não vivem como ensinam, ensinam como se deve viver.” – Sêneca

“Os que creem que o dinheiro tudo consegue neste mundo são propensos a fazer tudo por ele.” – Voltaire
“A injustiça feita a um é uma ameaça para todos.” – Montesquieu
“Não há nada que envelheça tão depressa como um benefício.” – Aristóteles
“A injustiça é o argumento dos que não têm razão.” – Rousseau
“O que temos a fazer é instruir, não proibir.” – Sócrates
“Só à força de ler os livros se aprende a doutrina que eles ensinam.” – Padre Antônio Vieira
“Alcançar um ideal é superá-lo.” – Nietzsche
“O êxito de um bom dito depende mais do ouvido que o escuta do que da boca que o diz.” – Shakespeare
“Todo o meu saber consiste em saber que nada sei.” – Sócrates
“Trata o teu inferior como queres ser tratado pelo teu superior.” – Sêneca

Parte II – Família - Mãe (Lembrança a D. Fany)

Guardo de você as melhores lembranças
Dos sacrifícios e permanente carinho
Sua figura bonita e cheia de esperanças
Minha mãe, o meu doce caminho.
Veio de longe, para o calor tropical
Para morar numa vila em Pilares
Ao lado do pai, uma companheira ideal
Eram assim os imigrantes, nos lares.
Quantas vezes a surpreendi
Vertendo um choro contido
Era dura a vida aqui
Um sofrimento seguido.
O pai, caixeiro viajante,
Meses incontáveis de ausência
Um verdadeiro judeu errante
Foi-nos imposta a abstinência.
Mas a mãe, sem arredar pé
Cuidava da casa e de cada rebento
Sem jamais perder a fé
Na verdade, o nosso sustento.
Veio a doença do pai
E ela sempre ao seu lado
Disse-lhe, um dia, ele se vai
Em Deus a mãe tinha confiado.
Tudo acaba nessa porfia
Fica no coração a saudade
Dessa longa agonia
Que não conheceu idade.
Se pudesse pedir ao destino
Algo muito especial
Queria ter composto um hino
Prá minha mãe sem igual.

Parte III – Educação - O exemplo da Finlândia

Ruth está casada comigo há mais de 60 anos. Temos uma vida feliz e de grande cumplicidade. Tanto que ela participa ativamente da elaboração dos meus trabalhos, como é o caso deste livro. Outro dia, recordou a minha experiência de 13 anos como cônsul honorário da Finlândia, no Rio de Janeiro. A pergunta foi simples e direta: por que o Covid-19 afetou pouco o país escandinavo? É uma verdade que cumpre analisar, com os cuidados devidos.

Conhecendo a realidade finlandesa, inclusive com a visita feita a Helsinki no ano 2000 (em companhia do então ministro Pimenta da Veiga), posso assegurar que tudo é uma questão de civilização, ou melhor, da apurada educação alcançada pelo país escandinavo. Mentalidade do seu povo, como se pode depreender do diálogo que assisti entre seu ministro da Educação e o ministro brasileiro das Comunicações. Este indagou do seu colega como se podiam justificar os altos índices de crescimento social e econômico da Finlândia. A resposta não demorou: “Damos absoluta prioridade à educação. Em segundo lugar, educação, e, em terceiro lugar, educação.” Pimenta pediu que eu anotasse.

Agora, por ocasião da pandemia, o número de infectados e de mortos na Finlândia é bem menor do que em outros países europeus. Pode-se atribuir o fato aos cuidados tempestivos do governo, com os isolamentos necessários e o uso dos apetrechos indispensáveis, como máscaras e luvas. O povo obedece.

No livro Uma Nova Maneira de Pensar (Edições Consultor, 1997), analisei com os olhos bem abertos o chamado “país dos mil lagos”. A Finlândia foi uma província sueca afastada e pouco povoada, mas, hoje, com os seus 5 milhões de habitantes, é uma das nações mais desenvolvidas do mundo. Pude visitar demoradamente as instalações da Nokia. O avanço da era digital representa um motivo de orgulho do povo finlandês, que sempre lutou pela sua liberdade, como se expressa no poema épico Kalevala.

Depois da II Guerra Mundial, a Finlândia entregou-se a um incontornável processo de modernização e industrialização. Próxima à Rússia (em 30 minutos chega-se de avião a São Petersburgo), facilitou a criação de um grande sistema de trocas comerciais e culturais. Dispõe de uma vasta natureza virgem e mil lagos. É um polo turístico de primeira ordem.

Por Manoela Ferrari