Junho, 2020 - Edição 256
Centenário de Clarice
Por Manoela FerrariPela imprensa, Clarice Lispector (1920-1977) já foi
chamada de misteriosa, exótica e até de bruxa. Mas a
romancista, contista, cronista, tradutora e jornalista gostava de se definir de forma mais simples: escritora e dona
de casa: “Não escrevo para fora, escrevo para dentro.”
Assim, explicava a sua literatura.
Neste ano, comemora-se o centenário do nascimento de Clarice. A escritora nasceu no dia 10 de
dezembro de 1920, em Tchetchelnik, aldeia da Ucrânia,
então pertencente à Rússia. Seu nome de nascença era
Haia. Os pais, judeus russos, emigraram três anos após
a Revolução Bolchevique de 1917, devido à violência e a
perseguição antissemita.
A família chegou ao Brasil em 1922, na cidade de
Maceió, onde adotaram novos nomes. Haia, então com
dois anos de idade, se tornou Clarice. Pouco depois, foram para Recife.
Após a morte da mãe, mudaram para o Rio de Janeiro.
Clarice Lispector começou a trabalhar muito cedo, como professora particular de português e matemática. Em 1939, ingressou na
faculdade de Direito, concluída em 1943. Durante os estudos, trabalhava também como repórter, na Agência Nacional.
Escreveu seu primeiro romance aos 22 anos: Perto do Coração
Selvagem. Segundo ela, escrevê-lo foi um processo de angústia, pois “o
romance a perseguia”. Em 1943, aos 23 anos, naturalizou-se brasileira.
Um ano mais tarde, publicou o livro, com calorosa acolhida da crítica,
recebendo o Prêmio Graça Aranha.
A crítica brasileira chegou a comparar seu estilo com escritores
como James Joyce e Virgínia Woolf. O livro conta a história de Joana,
desde a sua infância até a vida adulta. Antonio Candido reconheceu,
nessa obra, um talento literário precoce. O texto já mostrava seu estilo
pessoal, explorando o campo psicológico das personagens e o uso do
monólogo interior (discurso da personagem na primeira pessoa, em
que ela reflete sobre seus sentimentos, ideias ou experiências).
Em 1944, casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente,
acompanhando o marido em suas estadias fora do Brasil. A primeira foi Nápoles, na Itália. Com a Europa em guerra, Clarice trabalhou
como voluntária de assistente de enfermagem, no hospital da Força
Expedicionária Brasileira.
Continuou escrevendo, e, em 1946, publicou O Lustre. Nesse
mesmo ano, passou a morar em Berna, na Suíça. Em 1949, nasceu o
primeiro filho, Pedro, no mesmo ano em que publicou A Cidade Sitiada.
Dedica-se a escrever contos. Três anos depois, publicou Alguns Contos.
Depois de morar seis meses na Inglaterra, mudou-se para os
Estados Unidos, onde nasce seu segundo filho, Paulo, em 1953. Em 1954,
Perto do Coração Selvagem foi publicado em francês.
Em 1959, Clarice se separou do marido e retornou ao Rio de
Janeiro, acompanhada dos filhos. Começou a trabalhar no Jornal Correio
da Manhã, assumindo a coluna Correio Feminino. Trabalhou, também,
no Diário da Noite, com a coluna Só para Mulheres. Nesse mesmo ano,
lançou Laços de Família, livro de contos que recebeu o Prêmio Jabuti,
da Câmara Brasileira do Livro. Em 1961, publicou A Maçã no Escuro,
recebendo o prêmio de melhor livro do ano, em 1962.
A escritora dedicou parte de sua produção aos contos, trazendo
como características elementos tais como o fluxo de consciência, o
monólogo interior e a ruptura com o enredo factual. As temáticas são
existenciais e psicológicas.
O mais importante romance de Clarice Lispector é A Paixão
Segundo G.H. Lançado em 1964, ano em que a ditadura militar se consolidou no Brasil, a obra conta a história de uma mulher de classe média
(GH) que, ao arrumar o quarto de empregada, se depara com uma barata. Assustada, ela a espreme contra a porta de um armário. O incidente
passa a causar uma série de reflexões existenciais na protagonista, conduzindo-a à tomada de consciência. Trata-se de um longo monólogo
em que a narradora faz um mergulho em si mesma, em um fluxo de
pensamentos e sentimentos.
Em 1967, publicou O Mistério do Coelhinho Pensante. Sofreu
várias queimaduras no corpo e na mão direita, enquanto dormia com
um cigarro aceso. Passou por várias cirurgias e viveu isolada, sempre
escrevendo. No ano seguinte, publicou crônicas no Jornal do Brasil.
Passou a integrar o Conselho Consultivo do Instituto Nacional do
Livro. Era considerada uma “pessoa difícil”. Em 1976, pelo conjunto de
sua obra, Clarice ganhou o primeiro prêmio do X Concurso Literário
Nacional de Brasília.
Naquela época, a literatura brasileira era marcada pelo regionalismo, com histórias lineares que abordavam a realidade regional do país e
as questões sociais. A narrativa da escritora representou, portanto, uma
inovação no romance brasileiro, ao quebrar a linearidade discursiva (do
tipo início-meio-fim) e adotar o ponto de vista do narrador não onisciente para narrar a história.
Clarice trabalhou como jornalista até 1975, passando por revistas e
jornais nacionalmente conhecidos, como a revista Manchete, da Editora
Bloch, escrevendo crônicas e colunas para o público feminino. A autora
faleceu de câncer, no dia 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro, um
dia antes de completar 57 anos. Durante o tratamento da doença, escreveu seu último romance publicado em vida: A Hora da Estrela.
O livro é uma reflexão sobre os esquecidos da sociedade e a falta
de perspectiva dos rostos anônimos dos que imigram para os grandes centros urbanos. Apenas com a morte, a personagem principal,
Macabéa, alcança a sua “hora de estrela”. Clarice Lispector encerrou a
narrativa com a descoberta da própria morte. Ela morreu dois meses
depois de publicar o romance.
Uma das maiores escritoras do Brasil dizia que escrevia para se
entender e para “dizer o indizível”. Sua obra envolve questões da filosofia e conceitos metafísicos. Críticos comparam alguns de seus textos ao
pensamento existencialista de filósofos, como o francês Jean-Paul Sartre
e o dinamarquês Søren Kierkegaard, em temas como a angústia da existência humana, o mal-estar cotidiano, o nada, o amor e a liberdade.
Pertencente à terceira fase do movimento modernista, Clarice
Lispector imprimiu em suas obras uma literatura intimista, de sondagem psicológica e introspectiva, com mergulhos no pensamento e na
condição humana. Leitura atemporal e imprescindível para os amantes
das letras.
Obras de Clarice Lispector
Perto do Coração Selvagem, romance, 1944O Lustre, romance, 1946
A Cidade Sitiada, romance, 1949
Alguns Contos, contos, 1952
Laços de Família, contos, 1960
A Maçã no Escuro, romance, 1961
A Paixão Segundo G.H., romance, 1961
A Legião Estrangeira, contos e crônicas, 1964
O Mistério do Coelho Pensante, literatura infantil, 1967
A Mulher que Matou os Peixes, literatura infantil, 1969
Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, romance, 1969
Felicidade Clandestina, contos, 1971
Água Viva, romance, 1973
Imitação da Rosa, contos, 1973
A Via Crucis do Corpo, contos, 1974
A Vida Íntima de Laura, literatura infantil, 1974
A Hora da Estrela, romance, 1977
A Bela e a Fera, contos, 1978