Maio, 2020 - Edição 255

Guerra e Paz

Por Manoela Ferrari

Quando o presente não nos basta, é preciso colocar um farol no passado em busca não só de clarear o entendimento como também de alternativas e soluções para o que nos reserva o futuro. Em relação à crise provocada pela pandemia do novo coronavírus, epidemiologistas e autoridades do mundo inteiro se basearam em experiências passadas para traçarem metas de ação. A Organização Mundial de Saúde recomendou a quarentena e o isolamento social como intervenções necessárias. O objetivo comum do confinamento é reduzir a quantidade de casos simultâneos, permitindo que os serviços de saúde tenham condições de atender a todos. Nós, do Jornal de letras, não somos médicos, nem especialistas na área de saúde. Nossa ciência é a Língua Portuguesa. Nosso exército são as palavras. Nossas armas, os livros. Nosso arsenal, a literatura. A matéria-prima do nosso material de trabalho são as letras. Isso explica por que estamos sempre atentos às narrativas. Partimos em busca da literalidade de termos e expressões, procurando, na raiz etimológica e na semântica, explicações e significados que, numa leitura leiga, podem passar despercebidos. Um olhar atento para dentro dos discursos é capaz de extrair “guerra ou paz”. Saímos em busca da origem da palavra “crise”. A etimologia do termo – bem como as acepções derivativas de usos específicos que configuram dezenas de verbetes singulares – pode até não ser “útil”, no sentido estrito do termo, mas é, no mínimo, curiosa para a problematização da atual pandemia do novo coronavírus. A origem do substantivo vem do latim – “crisis” – e significa “momento decisivo, de mudança súbita”, decalque do grego “krísis” (“decisão”), que Hipócrates, o “pai da medicina”, já empregava com esse sentido. A palavra chegou ao português no século XVIII. À princípio, no vocabulário da medicina, designava “o momento na evolução de uma doença em que ela se define entre o agravamento ou a cura”. O termo era usado pelos médicos antigos com um sentido particular.

Quando o doente, depois de medicado, entrava em crise, era sinal de que haveria um desfecho: a vida ou a morte. De acordo com o Houaiss, no século XIX, a palavra passou a ter amplo emprego no vocabulário da economia, para nomear diversas “doenças” figuradas. O vocábulo seria traduzido como uma “fase de transição entre um surto de prosperidade e outro de depressão, ou vice-versa”. O Dicionário Etimológico de Antenor Nascentes dá também, além de “momento decisivo”, os significados de “separação” e “julgamento”. Há consenso entre diversos outros pesquisadores de que a crise leva à ruptura com o estado anterior. O novo rumo pode ser de melhora ou piora, tanto em medicina como sociologia, em que o vocábulo é muito usado. De um modo geral, crise designa uma fase ou uma situação perigosa, um estado transitório de incerteza e dificuldades, mas também com possibilidades de renovação.



Pontos de vista

Do ponto de vista filosófico e sociológico, “crise” se traduz no pensamento de um povo, quando as formas de arte, literatura, filosofia e moralidade entram em declínio, com o enfraquecimento das crenças em que repousam, despontando novas formas correspondentes a aspirações e necessidades. A noção de crise encontra-se muito difundida nas linguagens filosófica e sociológica. Remonta, segundo alguns estudiosos, a SaintSimon, que, em L’introduction aux travaux scientifiques du XIX esiècle (1807), faz a distinção entre “épocas orgânicas e épocas críticas”. As primeiras repousam num sistema de crenças bem estabelecidas. O progresso indiscriminado leva à alterações, determinando o início de uma época crítica. A crise renascentista é a passagem da época medieval para a época moderna. Fala-se de “crise” em relação a sujeitos, a uma vida ou a uma forma de vida, a um sistema ou uma “esfera” de ação. O caso paradigmático de crise é a da vida, na qual, se levada ao extremo, está se tratando de vida ou morte. Em toda crise filosófica, os envolvidos confrontam-se com a questão hamletiana: “ser ou não ser.”

Mito chinês

“Só poderá haver uma revolução permanente se esta for uma revolução moral: a regeneração do homem interior”. Curiosamente, a lenda etimológica que acompanha a crise como uma sombra não se relaciona ao vocábulo português, que tem uma história bem clara, e sim a um termo (pasmem!) chinês correspondente a ele. Há um mito contemporâneo especialmente caro a consultores e palestrantes: em chinês, weiji, “crise”, seria um ideograma formado pela junção de dois outros – um negativo, “perigo” (wei), e um positivo, “oportunidade, ocasião propícia” (ji). Ou seja, segundo a milenar sabedoria chinesa, toda crise poderia também apresentar, como lado “positivo”, uma “oportunidade para crescer diante do perigo”. Porém, acadêmicos de mandarim observam que, embora signifique mesmo oportunidade, quando se junta a “hui” para formar “jihui”, o ideograma “ji” perderia a conotação positiva ao ser tomado isoladamente. Entre os sentidos que pode assumir, está o de “momento crucial”. Ou seja, “momento crucial de perigo” – e não “perigo e oportunidade” – seria a tradução literal de weiji. Seja lá o sentido que cada um der, o fato é que estamos todos diante de uma fratura exposta, em meio a uma guerra contra um inimigo tão minúsculo quanto mortal: o Covid-19. A enfermidade que atinge o planeta envolve o esgotamento de modelos econômicos, políticos, ambientais e sociais que precisam urgentemente ser revistos. Os paradigmas de crescimento econômico e da polarização social, somados com a degradação do meio-ambiente, caminham para a devastação da humanidade. Para além de sobrevivermos à atual crise mundial do novo coronavírus, importa-nos partir em busca de superação. Diminuir o sentido da crise através de discursos otimistas, travestidos em tranquilidade falsa, é contribuir para a sua permanência. A percepção da gravidade e da extensão do problema é proporcional ao legado de respostas que devemos ser capazes de construir. A crise mundial do Covid-19 demanda, para além de ações emergenciais, o aumento dos investimentos e gastos com a saúde, ciência e tecnologia. Países como o Brasil, onde há uma objetiva possibilidade de integração entre biodiversidade e diversidade cultural, podem assumir a vanguarda de propostas transformadoras. Estamos diante da oportunidade de repensar e redefinir o modelo de existência do planeta. O reconhecimento da importância e centralidade da ciência, saúde e educação, tanto no desenvolvimento econômico, quanto na perspectiva do desenvolvimento humano, é inquestionável. Não se trata de superar a crise somente por resistir aos seus efeitos, mas pela própria capacidade humana de rever os seus valores e princípios. Devemos assumir o sentido dado pelos gregos. Se o momento é de morte ou guerra, a escolha deve ser de cura e paz.

“O mal não pode vencer o mal. Só o bem pode fazê-lo.”

“Onde há amor, lá Deus está”.

“Todo mundo pensa em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo.”

“Não há grandeza quando não há simplicidade”.

Frases de Leon Tosltói

Sugestão de Leitura

Em tempos de quarentena e do necessário isolamento social, nossos leitores nos pedem sugestões de leitura. Há milhares de indicações, mas vamos condensá-las numa obra de peso. Com centenas de personagens e mais de mil páginas na versão original, Guerra e Paz, de Leon Tolstói (1828-1910), é considerado um dos maiores romances da história. O enredo deste clássico da literatura se passa no período de 1805 a 1820, mas é incrivelmente atual. Guerra e Paz é um livro sobre tentar encontrar o rumo num mundo virado do avesso devido à guerra, mudanças sociais e políticas e caos espiritual. A angústia existencial de Tolstói e de seus personagens traz mensagens muito importantes. O jogo da política, as intrigas da corte, as tramas da sociedade, as táticas da nobreza arruinada, a brutalidade da guerra, sua banalidade e seus acasos, além dos bastidores do poder, tornam a história muito familiar para todos nós. A descrição da tentativa falhada de Napoleão de conquistar a Rússia, em 1812, tornou-se uma metáfora cultural ilustrativa de que os futuros líderes russos se serviriam para retratar a magnificência do país. Mas há uma mensagem de humanidade universal que transcende a política no seu todo. Tolstói oferece um modelo de patriotismo livre dos nacionalismos. Guerra e Paz revolucionou o romance moderno, em parte por condensar mais experiências humanas do que qualquer outro livro. Em 361 capítulos, desfilam mais de 600 personagens. O mundo, conforme Tolstói nos apresenta, é um lugar misterioso onde os fatos nem sempre são o que parecem. A tragédia de hoje pode abrir o caminho para o triunfo de amanhã. Foi esta a mensagem que inspirou Nelson Mandela, quando esteve preso, e que o levou a dizer que Guerra e Paz era o seu romance preferido. O livro ressalta que, independentemente dos momentos difíceis, as crises nos fazem desabrochar e nos conduzem às inesgotáveis fontes de força e criatividade. Guerra e Paz não é só um grande romance. É também um guia para viver melhor. O que Tolstói oferece não é uma série de respostas prontas para cada problema que a vida apresenta. O autor convida-nos a não nos deixar levar pelas opiniões, mas a buscar um sentido mais profundo de tudo, procurando a experiência autêntica da vida interior. Segundo Tolstói: “A história é o que nos acontece. O destino é o que fazemos com ela”.