JUlho - 2024 - Edição 301
Era uma vez, na Constelação Ziraldiana
Bem no comecinho dos anos 1990, eu meio que entrei de
gaiato no movimento negro. Por acaso, nessa coisa de buscar espaço na imprensa alternativa, acabei sendo escalado para realizar
uma entrevista com o Ziraldo para o jornal Maioria Falante, que
tinha como pauta a luta contra a discriminação racial. Depois de
diversas tentativas para marcar um encontro com ele, consegui
agendar uma visita à Zappin, que era a empresa que o Ziraldo
comandava na época, localizada no bairro Laranjeiras. Estive no
local 3 vezes, e o Ziraldo, que sempre agendava no final da tarde,
por volta das 17h, não me atendeu. Os motivos para cancelar os
encontros eram sempre parecidos, algum trabalho de última hora
havia surgido e a entrega era urgente, uma arte encomendada
de surpresa, coisas assim. Me recordo que, na terceira tentativa,
Ziraldo veio com um pincel sujo de tinta e se desculpou por não
poder me atender mais uma vez. Explicou rapidamente que teria
que terminar um cartaz até o final daquele dia e, a seguir, me passou um número de telefone. “Esse é lá de casa. Pode ligar que eu
vou te atender na próxima vez”, disse o cartunista.
Na semana seguinte, eu voltei às tentativas para agendar
com ele, e liguei para o número passado pelo Ziraldo. Eram mais
ou menos umas 15h, atendeu uma voz feminina que informou que
eu voltasse a ligar somente após às 17h. Tempos depois, soube por
pessoas próximas ao Ziraldo que ele costumava dormir durante o
dia e produzir mais na parte da noite, às vezes trabalhava até alta
madrugada. Aí, entendi porque ele sempre marcava comigo após
as 17h.
Finalmente consegui falar com ele e, novamente, Ziraldo
agendou na Zappin. Depois de três idas ao local sem conseguir
entrevistar o Ziraldo, finalmente o criador do Menino Maluquinho
me atendeu. Chegou e disse que tinha alguns minutos para a
entrevista. Em pensamento, antecedendo um palavrão, disse a
mim mesmo: só alguns minutos? Então, fomos ao estúdio dele que
sentou-se à prancheta, eu peguei a mala que trouxe comigo, puxei o zíper e comecei a abri-la. “O que tem aí dentro?”, perguntou o
Ziraldo. Eu apenas disse que era o meu gravador Philips (daqueles antigos, tipo tijolão que funcionava com duas pilhas grandes)
e mais umas coisinhas que ele saberia depois. Então, liguei o
gravador e começamos a papear. Acho que fiquei com ele mais
ou menos uma hora lá e, assim que terminei a entrevista, disse
que gostaria que ele autografasse alguns livros, abri novamente a
mala e comecei a retirar diversos livros para o Ziraldo autografar.
Ele olhou a cena, viu a pilha de livros se formando na prancheta
e, meio contrariado, falou: “Cara, isso tudo? Não vou autografar
todos, não. É muita coisa! Escolhe um aí que você mais goste que
eu tenho que sair para jantar.” Contrariado, mas me sentindo no
lucro por ter permanecido por mais de uma hora na constelação
da estrela máxima do desenho nacional e, finalmente, conseguido a tão desejada entrevista, eu escolhi e saquei o livro coletânea
que havia sido lançado pela editora Salamandra naquela época.
É um livro grande, de capa dura, pesadão, no melhor estilo “Livro
de Arte”.
Quando coloquei o livro na frente dele, eu disse: Então
capricha e autografa este que eu comprei dias atrás! Acho que, num
lampejo, Ziraldo ficou com pena de mim por eu ter levado vários
livros numa mala junto com o gravador. Ele deve ter pensado: “Esse
tampinha saiu da Zona Norte, de buzão, carregando esse peso
todo, maior que ele, coitado!”. Aí, mudando o tom de voz, Ziraldo
me olhou e disse assim: “É sério que você comprou esse livro? O
livro é muito caro, um absurdo o que a editora tá cobrando nas
livrarias. Você não deveria ter comprado. Só por causa disso, vou
autografar todos os livros que você trouxe!” E assim foi, Ziraldo
autografou todos os livros que carreguei da Estação do Riachuelo
até Laranjeiras. Eu, na minha tolice de iniciante, saí de lá no salto,
todo orgulhoso, crente de que iniciava uma biblioteca tão valiosa
quanto a do Alvarus.
Saúde e Arte!