Setembro - 2022 - Edição 283

Desenharte 19 anos No dia 1º de junho de 2001, resolvi passar pelo Norte Shopping com a ideia de comprar um CD para minha mãe que, naquela data, comemorava mais um aniversário. Entrei numa loja especializada e comecei a procurar alguma coisa que fosse do agrado da Dona Glória, cujo gosto eclético flutua entre Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Zeca Pagodinho, Moacy Franco e muita gente boa. Eu estava na seção de sambistas e bati de frente com um disco do Luiz Ayrão. Enquanto olhava frente e verso da embalagem, lendo os detalhes daquela obra, no caso uma coletânea da série Meus Momentos, da EMI, percebi que alguém estava atrás de mim. Imaginando que fosse um cliente aguardando que eu saísse da frente daquela prateleira para também escolher um CD, movimentei-me com a intenção de abrir espaço para o “cliente” da loja, quando ele me disse, referindo-se ao Luiz Ayrão: “Esse cara é bom!”. Concordei fazendo sinal positivo com a cabeça e, ao olhar para o sujeito, descobri que estava dando papo ao próprio Luiz Ayrão (cuja caricatura, desenhada exclusivamente para esta edição, é do genial Nei Lima). Percebendo meu pequeno susto, ele riu e informou que estava indo para uma loja em frente. “Vou naquela ótica ali. Dá uma chegada lá que eu autografo o disco para você!”, disse e se retirou. De fato, seria um presente especial e tanto, um disco autografado para minha mãe não poderia ser melhor e mais autêntico.

Comprei o CD e fui à tal ótica. Luiz Ayrão estava na parte administrativa da loja e me convidou a entrar. Informou que a loja era de sua filha e que estava apenas fazendo uma visita. Passamos a conversar e ele me perguntou o que eu fazia da vida. Naqueles dias, eu estava encerrando minha trajetória como desenhista, já que, há poucas semanas, eu havia sido demitido de uma editora. “Sou um desenhista recém-desempregado”, respondi. Foi então que ele comentou mais ou menos assim: “Na arte, é preciso abrir o leque. Além de desenhar, você escreve?” Respondi que eu apenas anotava algumas coisas sobre desenho e História da Caricatura, e que cheguei a publicar um textinho bem tosco no extinto Jornal de Letras, dos irmãos Condé (Elysio, José e João), poucas edições antes da extinção do jornal; mas que nunca havia desenvolvido nada importante. Luiz Ayrão então sacou um cartão de visitas e anotou o nome e os contatos do diretor do Jornal dos Clubes. Informou que ele mesmo escrevia mensalmente para aquela publicação, e me disse para procurar o Jorge Nogueira dos Santos. “Pode falar com ele e dizer que é indicação minha!”, concluiu. Saí de lá com um autógrafo supersimpático para minha mãe e com algumas ideias legais sobre a possibilidade de me tornar colunista de um jornal.



Os contatos com Jorge Nogueira não deram em muita coisa. Naqueles tempos, ainda não tínhamos a internet como é hoje, e os contatos eram mais lentos, burocráticos e previamente feitos pelo telefone fixo. Depois de algumas semanas telefonando, tentando me encontrar com Nogueira, ele me recebeu gentilmente na redação do Jornal dos Clubes e ouviu minhas sugestões. O problema é que ele não gostou muito da ideia de uma coluna sobre histórias em quadrinhos ou afins no seu jornal, e abortou a proposta logo no primeiro encontro, mas fiquei com a frase do Luiz Ayrão na cabeça (“é preciso abrir o leque”) e resolvi não desistir e buscar outro jornal. Durante meses enviei mensagens a diversas revistas e jornais, mas nenhum desses veículos sequer me deu qualquer retorno. Por mais de 1 ano, sempre que passava nas bancas de jornais, comprava todos os veículos alternativos para buscar espaço. Dei preferência à imprensa nanica, obviamente que eu considerava que nenhum jornal diário me aceitaria para escrever sobre o desenho brasileiro.

Por isso, mirei nos alternativos que ainda resistiam naqueles tempos – e pensar que hoje em dia a chamada “Grande Imprensa” respira por aparelhos. Quando me dei conta, já estávamos em 2003 e eu quase desistindo da minha utópica carreirade colunista, quando vi um jornal alternativo que eu ainda não havia adquirido, pendurado numa banca. Eu estava passando pela Rua Dias da Cruz, no Méier, e vi um exemplar do Jornal de Letras. Era a nova versão do jornal literário, agora editado pelo acadêmico Arnaldo Niskier. Comprei uma edição e, ao chegar em casa, enviei uma mensagem de e-mail para a redação propondo uma coluna sobre o desenho nacional. Alguns dias depois, recebi uma mensagem assinada pelo próprio Arnaldo Niskier solicitando que eu enviasse uma coluna experimental no formato horizontal, ocupando 1/3 de página. Depois de dois anos tentando, foi a primeira vez que obtive ao menos uma mensagem de retorno. Fiquei empolgado e enviei material conforme as orientações, e a ideia, surpreendentemente, foi aprovada naquela mesma semana. A coluna Desenharte foi então publicada pela primeira vez em setembro de 2003, na edição nº 61. Aos poucos, ganhou mais espaço, até que na edição nº 135, de outubro de 2009, passou a ocupar uma página inteira.

Encontro com Arnaldo Niskier



Eu já estava há mais de 1 ano publicando a coluna no Jornal de Letras, quando recebi uma ligação da Andréia Ghelman, filha de Arnaldo Niskier e secretária executiva do jornal. Numa rápida conversa, ela sugeriu que eu fizesse uma visita à redação, já que ainda não nos conhecíamos pessoalmente. A ideia era que eu fosse apresentado ao Arnaldo Niskier, coisa que, confesso, me deixou bastante inseguro. Não fazia ideia de como seria conhecer um imortal da Academia Brasileira de Letras. Além disso, Niskier é a própria História da língua portuguesa, jornalista com passagens pela revista Manchete, da Bloch; jornal Última Hora e Rádio MEC, além de ter tido participação efetiva nos governos da Guanabara, de Negrão de Lima, e Secretário de Educação e Cultura do Rio de Janeiro. Também recordei da minha timidez nas poucas vezes que esbarrei com outro imortal da ABL, no caso o velho Austregésilo de Athayde, nos tempos que trabalhei no Jornal do Commercio, nos anos 1980. Todas as vezes que esbarrava com ele no elevador, o silêncio quase sepulcral era cortado com sua frase “muito obrigado!”, ao ascensorista, quando ele saía. Outra coisa que me preocupava bastante era meu péssimo hábito na maneira de me apresentar e vestir. Eu não uso roupas sociais, não calço sapatos há anos (só uso tênis) e minhas camisas são sempre daquelas de malha, quase sempre com uma estampa nerd explodindo, no pior estilo “Sheldon Cooper”. Quer dizer, eu teria tudo para me sentir como um filhote de cuco que acabou de sair da casca.

Quando fui a Ipanema, na empresa onde se localiza a redação do Jornal de Letras, fui levado à sala do Niskier. Ele me recebeu, como se diz na gíria, “no salto”. De terno e gravata, elegante como poucos, me convidou a sentar à sua frente e foi logo perguntando: “E então, Zé, você é de onde?” Eu, imaginando que o Arnaldo Niskier fazia parte daquela elite que não conhece nada além da Vieira Souto, respondi que eu era um suburbano típico, praticamente nascido e criado num bairro chamado Riachuelo. E ainda retifiquei: “Sou do Riachuelo, o bairro, e não a Rua do Riachuelo, do Centro do Rio. As pessoas sempre confundem!” Foi aí que o Niskier me deu uma rasteira e desandou a descrever o bairro do Riachuelo de forma invejável: “Ah, sim, bairro dividido pela linha férrea, de um lado a Ana Neri, pertinho da Rua Flack, e do outro lado a Marechal Rondon e as ruas Vitor Meireles, Marechal Bittencourt, que é onde fica o Riachuelo Tênis Clube, esquina com a Rua 24 de Maio, próximo da estação, aliás, onde o médico e deputado Bezerra de Menezes fez fama. Joguei muita bola de meia no bairro! Passei parte da infância na localidade!” Depois de praticamente me derrubar, percebi que a tal imortalidade era mera formalidade. Arnaldo Niskier é simples e mortal como os meus.

Depois deste primeiro encontro, estive no endereço mais algumas vezes, inclusive a foto que ilustra esta edição foi um clique da Andréia Ghelman, em 2018.

Assim nasceu esta coluna, graças a um encontro casual com o cantor e escritor Luiz Ayrão, e à simplicidade imortal de Arnaldo Niskier, o único editor que deu importância ao Desenho Brasileiro, e respondeu minha mensagem.

Saúde e Arte!