Novembro, 2025 - Edição 309
Reflexões sobre a arte da escrita
Godofredo de Oliveira Neto é um exímio escritor que já demonstrou o seu domínio da narrativa em seus vários livros, como O Menino
Oculto (2005), Amores Exilados (2011) e O Grito (2016), apenas para citar
alguns marcos de sua produção. Em seu mais recente romance, O Desenho
Extraviado de Hieronymus Bosch (São Paulo: Minotauro / Almedina, 2023),
ele inova em sua produção ao trabalhar a sua escrita de forma a lhe impor
um ritmo, que é, ao mesmo tempo, rápido e circular em que a narrativa
busca acompanhar a velocidade da comunicação hodierna da troca de
mensagens por telefone celular, entre alternâncias entre narrativa e diálogo e trocas de perspectivas de quem conta a história, na qual a narração
também acontece em vários planos, em que o personagem principal ora
narra, ora é narrado. Tudo em um ritmo no qual importa mais o modo
como o texto é construído do que a trama em si, com um possível começo,
meio e fim. Com esse romance, Godofredo parecer trabalhar com a perspectiva de que literatura é forma. A história que ele nos conta até poderia
ser contada pelo cinema ou pelo teatro, mas nunca com a forma, o ritmo
e as características que a literatura propicia.
A trama acontece em um cenário em que a pandemia do COVID
estava prestes a explodir, em que se pressente uma tensão no ar e em que,
a todo o momento, somos lembrados de uma gripe estranha que afeta
mais e mais pessoas e que, nas palavras do texto (p. 115), é “um negócio
brabo, um vírus que vem da China”. É nesse contexto que Luigi, um jovem
catarinense, parte em uma missão internacional em busca de um esboço
(que pertenceria à sua família) da famosa pintura A extração da pedra da
loucura, realizada entre 1475 e 1480 pelo pintor holandês Jeroen von Aken,
mais conhecido pelo pseudônimo de Hieronymus Bosch (1450-1516). A
sua busca pelo valioso desenho o levará a encontros inusitados em Santa
Catarina, Veneza, Nova York e, sobretudo, a um encontro com a sua mente
inquieta, que, em muitos momentos, parece não distinguir entre ficção e
realidade ou entre sanidade e loucura. O personagem central se envolve
em uma espiral de eventos que parecem conduzi-lo a uma espécie de
autoconhecimento em que ele tem de aprender a controlar a si mesmo
diante de crises de ciúme que sente de sua namorada distante, diante de
decisões a serem tomadas, ou frente a desmaios que lhe acometem a cada
vez que ele tem de lidar com o pânico, com o medo, com a violência, ou
com algo inesperado, com situações que fogem aos seus planos previamente traçados e, principalmente, com a visão (muitas vezes negativa) que
tem de si mesmo, como vemos no seguinte trecho (p. 104): “... desapareço
de mim mesmo, nas minhas cavernas fétidas e sombrias, a imagem da
barata se arrastando no esgoto me invade os olhos, às vezes tenho nojo
de mim.”
A incumbência de recuperar o valioso esboço conduzirá Luigi a
um périplo no qual ele tem de lidar com mafiosos, uma prostituta, redes
de espionagem, falsificadores de obras de arte, intrigas dentro da própria
família e incertezas de quem ele pode confiar ou não, o que o leva à paranoia e a visões de características surrealistas como as encontradas nas
pinturas de Bosch (p. 61): “Viajo, a cabeça viaja, o corpo voa, levito, dou
ordens à natureza, os animais da floresta permanecem estáticos, congelados, aguardam minhas diretivas, homens e mulheres se aproximam,
ajoelham-se, pedem benção, só vos resta o inferno, digo com voz rouca.
Seus pecadores!” A trama é, também, sobre a tentativa de o personagem
principal provar para si mesmo e para os outros que é capaz de realizar
uma tarefa importante no mundo, em meio a uma família que duvida dele
o tempo todo e o vê como o elo mais fraco de sua corrente (p. 71): “... irmão
burro, babaca, sempre foi aéreo, olhando para as estrelas, tinha visões na
infância, visões para não ir à escola, o vadio, sexualidade ambígua, como
é que a gente aceitou que um zero à esquerda desse ficasse como nosso
inventariante?” Diante dessa visão familiar negativa, Luigi busca provar,
não com pouca dificuldade, para si mesmo e para os outros, que consegue
lidar com a “missão” que a família lhe entrega. E nessa busca ele se coloca
em situações limites, como a ida ao submundo latino de Nova York.
Na trama, Godofredo de Oliveira explora a todo momento elementos como a tensão, a ilusão, a fantasia e a loucura, temas tão caros à
própria pintura de Hieronymus Bosch, como um desejo de trazer para o
mundo da literatura o espírito da obra do pintor holandês ou, ao menos,
de constituir uma literatura que seja referencial à obra do pintor como, por
exemplo, no momento em que o personagem principal, se dirigindo aos
leitores, fala de sua própria dificuldade em lidar com aquilo que chama
de “minha loucura” (p. 28): “Não tenho forças para me desvencilhar da
minha inconstância e loucura, talvez o leitor e a leitora o tenham.” Mas o
livro não se limita à evocação de Bosch, ele é multireferencial. São muitas
as referências literárias, cinematográficas e de outras artes na obra como,
por exemplo, cinema, opera e, é claro, pintura. Dante Alighieri, Clarice
Lispector, Cruz e Souza, Caetano Veloso, Cildo Meireles, Ana Cristina
César, José Saramago, Carolina Maria de Jesus, Manu Chao, Martinho
de Haro, Adriana Varejão, José Padilha, Cruz e Souza e Georges Bizet são
apenas alguns referenciais evocados na trama, o que confere à escrita um
caráter dialógico e fragmentado.
Ao final da narrativa, Luigi vê a obra de Bosch como que refletida
em sua própria existência, como se a sua procura fosse, nada mais, nada
menos, do que uma busca por si mesmo e pelo seu lugar na existência
(p. 112): “Ando até a Galeria dell’Accademia, direto às pinturas de Bosch,
o tríptico da Santa Liberata, a santa crucificada me apavora, os painéis
Quatro visões da outra vida remetem para a minha vida, o tema da punição
e da recompensa, o pecado e a virtude, o profano e o sagrado, minha vida.”
Trata-se de um movimento no qual obra de arte e vida se confundem, uma
mensagem (ou, ao menos um lembrete) que perpassa todo o romance,
pois cada referência não é aleatória, mas se funda firme na vida e no modo
de ser dos personagens. Trata-se de referências que ajudam a dar forma
constante e incessante (principalmente no caso de Luigi) às suas identidades múltiplas em meio à busca por um lugar no mundo.
Acho interessante finalizar, observando que, além de Luigi, outros
personagens do livro são apresentados de forma tão fragmentada que
podem também ser resumidos em uma das falas que definem o personagem principal como alguém que não consegue fazer nada (p. 30): “A
Matilde, minha irmã, acha o Luigi um deus, inteligente, estudioso, filho
que qualquer mãe queria ter, ele foi para a universidade porque não sabe
fazer nada, não achou trabalho. São todos assim, parece um esboço de
uma vida, uma esquisse de quadro.” No fim, não é apenas o personagem
principal que se mostra incerto e no limiar da loucura. Todos os personagens e, até mesmo, a própria trama com o seu caráter vacilante e fragmentado podem ser interpretados como uma metáfora para a incompletude.
Godofredo de Olivera constrói uma narrativa ímpar na qual a busca do
esboço de um quadro se transforma em uma potente metáfora para a vida
incompleta, tensionada e fragmentada da contemporaneidade, em que
muitas pessoas lutam para tentar realizar algo em suas vidas, mas que só
conseguem ficar no esboço de suas próprias e mal definidas existências.