Novembro, 2025 - Edição 309

Realismo fantástico, história e imaginação na obra de Adelpho Poli Monjardim

Adelpho Poli Monjardim (1903-2003) é um caso sui generis na literatura brasileira produzida no Espírito Santo, pois transitava entre a literatura tout court e a documental de uma maneira pacífica, sendo reconhecido por seus pares tanto pela qualidade de suas obras produzidas pela imaginação quanto por aquelas geradas por pesquisas históricas, como as biografias de figuras ilustres como Caxias, Tamandaré, Santos Dumont, Bolívar e San Martin ou sobre os conhecimentos acumulados sobre o Espírito Santo e Vitória, seu berço natal.

Romancista, jornalista, político, servidor público, político, historiador, geógrafo e esportista, na juventude, era figura conceituada na sociedade vitoriense, membro atuante do IHGES e da AEL, em que ingressou em 1973. Empresário malsucedido, administrador eficiente na Prefeitura de Vitória, Adelpho Monjardim vinha da família mais aristocrata de Vitória, os Monjardim, era filho do Barão de Monjardim, uma família que se destacou na política e nas armas. Adelpho, no entanto, foi uma exceção, pois se destacou nas letras. É o que afirma, em seu depoimento de 1986: “Nasci para as letras, vocação demonstrada desde a infância. No Ginásio Espírito-santense, o professor de Português, Dr. Jonas Meira Bezerra Montenegro, renomado literato e um dos Patronos da Academia Espírito-santense de Letras costumava passar descrições, que feitas em casa, seriam lidas em classe. Tomei muitos zeros, porque o professor julgava não serem feitas por mim, o que não deixava de ser um elogio. Até o momento em que deponho, 21 de abril de 1986, tenho dezesseis livros publicados e sete Prêmios Literários, sendo o quarto de âmbito nacional. Entretanto, fui muito boicotado. As minhas atividades literárias causavam mossa a determinados escribas que postulavam o domínio das nossas letras. Para mim tanto fazia ser o primeiro ou o último no rank. Escrever era o meu hobby. A modéstia, a minha companheira de sempre. A vaidade é negação da inteligência, isola os indivíduos.”

Talvez por sua origem aristocrática ou, ainda, por sua pouca escolarização, visto que só tinha a educação primária, feita no Rio de Janeiro, e a secundária, no Colégio Estadual, situação semelhante à da historiadora Maria Stella de Novaes, a elite intelectual com formação universitária, criada na ou pela Ufes, ignorou sua obra. Somente encontrei sobre ele e sua obra uma pequena referência feita pelo prof. José Augusto Carvalho, em Panorama das Letras Capixabas, publicado na Revista de Cultura – Ufes, em 1982. Além disso, nem uma linha sequer escrita de crítica literária sobre a sua obra, cerca de duas dezenas, publicadas de 1942, quando lançou a novela O Mistério da Ilha de Trindade, ao Entrevista de Guayaquil, precioso e bem documentado relato histórico sobre a conquista dos povos sul-americanos pelos espanhóis, desde Vasco N. Balboa, sob a indiferença fatalista dos fortes e a mesma paixão pela pilhagem mesclada por um forte zelo pela propagação da Fé (p. 8). Em sua última obra publicada, Monjardim contrasta a violência e a crueldade da conquista espanhola à contemporização dos lusitanos, com menos pressa na conquista. Em sua obra, o autor relata a destruição violenta das culturas originárias, sobretudo as astecas, maias e incas, num processo sanguinário de 300 anos e a luta pela independência das colônias espanholas, no início do século XIX, com a atuação de Miranda, Bolívar e San Martin, os principais líderes da América. O título da obra se refere ao acordo firmado em Guayaquil, entre Bolívar, que a desejava para a Colômbia, e San Martin, para o Peru. Eram os dois os libertadores do Norte e do Sul. Com a morte dos dois heróis, Guayaquil passa fazer parte do país chamado Equador, em 1830. Nesse livro, seu canto de cisne, Adelpho Poli Monjardim demonstra todo o seu conhecimento histórico sobre a América Latina, sua capacidade de lidar com fontes históricas pertinentes e a sua clareza na redação de um texto documental de nossa história.

Em O Tesouro da Ilha da Trindade, sua primeira obra literária, Adelpho Monjardim, embora iniciante, já apresentava maturidade linguística e estética, fruto de suas muitas leituras. O que desejo destacar, neste ensaio, no entanto, é a mistura de realidade e fantasia, característica da obra ficcional adelphiana. Conforme ele mesmo diz, no prefácio, à primeira edição: “Quando me propus escrever a novela O Tesouro da Ilha da Trindade, determinei de forma que a mesma não fosse apenas filha da fantasia, mero trabalho de ficção. Lenda ou realidade, essa história fabulosa viveu momentos de extraordinário esplendor ao apagar das luzes do século XIX, quando inúmeras expedições esquadrinharam os seus montes e vales à cata do fantástico El Dourado, para concluir: Como de início expus, esta novela não é fruto exclusivo da imaginação. Calcada sobre episódios históricos e mundialmente conhecidos, vem reviver a pitoresca e estonteante lenda que fez pulsar milhares de corações aventureiros e tornar conhecido de nós mesmos esse pedaço do Brasil, relegado ao esquecimento pela distância quase invencível que nos separa.” Assim, as lendas em torno de tesouros escondidos na Ilha de Trindade foram o motivo para o imaginário de Adelpho criar os personagens Ricardo Taylor, o Dick, filho de inglês e de brasileira e seu amigo Martinho de Nova, tenente da Marinha, que se aliam para ir em busca de um tesouro na Ilha da Trindade. Saem do porto de Vitória, em 1897, no Albatroz, com uma tripulação de 25 homens, comandados pelo Mestre Rodrigues. Ao chegarem à Ilha, descobrem Marina, filha do Mestre, e partem em busca do tesouro, que, no entanto, é protegido por um estranho vulto, o Solitário, um bichão ermo e grosso, com dois olhos que deitavam fogo. Após uma semana na ilha, muitas aventuras e perseguições ao monstro, chegam à caverna onde havia o tesouro guardado por ele. Martinho luta, ferozmente, com o monstro e vence-o, mas o tesouro se perde nas profundezas do oceano, junto com o seu guardião. Regressam a Vitória e Martinho ao Rio, mas promete voltar para irem em busca do tesouro perdido no fundo do mar. Dick, o narrador, termina a narrativa prometendo narrar, na próxima, a aventura que viveram, no mesmo cenário, quando voltaram, dez anos depois, em busca do tesouro perdido. É o final típico de uma novela de ação, como se pode observar, prometendo ao leitor novas aventuras: as peripécias dramáticas desta segunda expedição, levada a efeito dez anos mais tarde, pretendo, como a estas, enfeixar num livro que legarei aos meus filhos, se a minha saúde precária, irremediavelmente comprometida pelo clima inóspito da Trindade, o permitir.

Em sua primeira obra, Adelpho Monjardim já se apresenta como mestre desse gênero literário, a novela de ação, um modelo vencedor no século XIX e na primeira metade do século XX, cultivado por vários autores, bem como uma extraordinária capacidade de elaborar diálogos, para prender o leitor à sua narração. A presença do elemento estranho, misto de homem/animal, o solitário guardião, que luta até a morte para preservar o tesouro, também é outro elemento que caracteriza a narrativa realista fantástica, cultivada em outros livros do autor, como nos contos de A Torre do Silêncio e as Novelas Sombrias, em 1944. O realismo fantástico, em suas várias vertentes, o fantasmagórico, o estranho, o maravilhoso, foi sempre cultivado na literatura, e sua origem está no mito. Segundo J. L. Borges, o notável escritor argentino, costuma-se dizer que o relato fantástico, como gênero mais ou menos definido, aparece no século XIX, na literatura anglo-saxônica. Essa ideia, cremos, é demasiado parcial para ser verdadeira. Se recordarmos alguns dos temas recorrentes do conto fantástico – as parições de fantasmas ou de seres desconhecidos, as viagens através do tempo, as metamorfoses, os animais fabulosos, os poderes extraordinários, os feitos simultâneos em mundos paralelos, ou a imortalidade – não são assuntos privativos dos dois últimos séculos. Encontramse em tempos e espaços remotos. (In: Literatura Fantástica. Madri. Ed. Siruela, 1985).

Todavia, pode-se observar que as duas obras citadas de Adelpho Monjardim estão totalmente inseridas no realismo fantástico, com os elementos clássicos do gênero predominante no século XIX, consagrado por Edgar A. Poe, Hoffman, H. G. Wells, Hawthorne e tantos outros. Adelpho Monjardim não escreve à moda de Kafka, seu contemporâneo, ou dos brasileiros Murilo Rubião ou J. J. Veiga. Seu realismo fantástico, ou fantasmagórico, é o do século XIX, sem as nuanças psicológicas pós-freudianas a que se costuma associar o fantástico moderno. Assim, nos seis contos de A Torre do Silêncio, personagens e cenários são estrangeiros, exóticos à nossa realidade. Em Vinte minutos na Lua, o jovem jornalista nova-iorquino Bill, ao entrevistar um místico hindu, é submetido a uma experiência de ir ao lado desconhecido da Lua, por vinte minutos, em companhia da jovem Diana, assistente do guru; em Uma noite de horror, a experiência é passar uma noite de terror, numa casa abandonada, a Casa da Morte, onde, 15 anos atrás, ocorrera o assassinato de um fazendeiro por seu capataz; em A Torre do Silêncio, o cenário é a Índia, em 1857, na época da dominação inglesa. A história narrada por um oficial inglês, tempos depois, ocorreu durante a Revolta dos Cipaios, um levante armado dos indianos contra os ingleses, quando ele e um colega devem levar uma mensagem a um batalhão inglês e é preso, ferido, e colocado na torre do silêncio, onde os mortos eram colocados para serem devorados por abutres; o conto O Satanás de Iglawaburg ocorre em 1914, perto de Praga, quando o narrador, Ernest Beir, recebe um bilhete de um colega da universidade, para visitá-lo em seu castelo. Ao chegar lá, encontra o amigo preso à maldição de uma tela que retrata Satanás, o Gênio do Mal, trazida por um seu antepassado. O amigo enlouquece, incendeia o castelo e morre, pouco tempo depois, no hospício, enquanto o narrador se preparava para a Guerra, que incendiou a Europa. O quinto conto, O Purba retrata as aventuras de um jovem brasileiro filho dos Pampas, que sai pelo mundo, aos 17 anos, em busca de aventuras.

Depois de percorrer grande parte do mundo, se alia a um ex-pirata chinês, Feng-li, e decidem ir a Lhasa, a cidade sagrada, capital do Tibet. Depois de muitas peripécias, perigos e aventuras, conheceram o Buda Viva e o Purba, o punhal mágico que nomeia o conto; o último conto, O Diário da Medusa narra a história contada por um velho marinheiro, o Marselhês, sobre um barco, o Medusa, encontrado à deriva próximo à Ilha Maurício. Ao entrar no barco, encontrou a tripulação toda morta por monstro que invadiu um navio durante uma tempestade e o diário do capitão que registrou todo o horror. Sepultado o capitão e o Marselhês, ao chegar ao seu país, foi em socorro da família dos marinheiros mortos do Medusa. Conforme Borges, antes citado, a literatura é essencialmente fantástica, o importante é que o resultado seja feliz (Id., ibid., p. 25). Essa me parece a tônica de todos os contos citados: apesar de todas as peripécias, desafios, incertezas, medos, perigos, há um equilíbrio ao final, uma volta à normalidade, o que não acontece nas narrativas kafkianas, onde tudo é fantástico, e assim permanece.

Novelas Sombrias, também publicado em 1944 pela mesma editora A Noite, do Rio, constitui-se de uma novela O estranho caso de Phelippe Augusto Gringoire, e de cinco contos: O Fantasma da Casa Grande, O Fazendeiro da Bocaina, O Feiticeiro, O Lobisomem e O Convidado Nº 13. Todos trazem elementos bem característicos da narrativa fantástica: elementos sobrenaturais, insólitos, inexplicáveis, estranhos, ilógicos, mas com uma nebulosidade com relação à fronteira entre o real e o irreal, o possível e o impossível. Essa indistinção provoca no leitor uma hesitação que o faz perguntar: será que isso aconteceu mesmo? Ou ainda: o ocorrido é imaginação ou realidade? É sobre essa vacilação que trabalha o autor das histórias fantásticas e, nesse aspecto, Adelpho Monjardim é craque, mestre na arte de efabular e de construir diálogos e enredos verossímeis e fantasiosos. Outra faceta interessante nas narrativas fantástica do autor é a de trazer lendas capixabas, como a do Tesouro de Caçaroca, O Fantasma da Casa Grande ou a do Lobisomem do Caparaó.

Por Francisco Aurelio Ribeiro (AEL-IHGES)