Novembro, 2025 - Edição 309
O menino da sua avó
Tinha muitos janeiros nas costas, mas continuava a ser o
menino da sua avó. Já tivera uma vida inteira diante de si, mas não
esquecia o grande momento que um ser humano só pode ter uma
vez na vida: o despertar do primeiro amor. Assim é a história do
narrador de Línguas (2021), de Domenico Starnone (SP: Todavia,
2024), romance encantador pelo tom nostálgico, melancólico, que
tem como tema o relacionamento familiar, especialmente o do
neto com a avó materna. E o grande amor de infância.
A exemplo de outros títulos minimalistas e metonímicos –
de grande sucesso entre o público leitor do mundo inteiro, como
Laços, Segredos, Assombrações (no qual fala da experiência do avô
que se vê na obrigação de cuidar por poucos dias de um netinho
terrível de quatro anos) – Línguas tem múltipla significação. O narrador-personagem explora desde o dialeto napolitano de sua gente
até o estudo de Glotologia que faz na universidade. A língua associada à classe social e ao nível intelectual; a língua como elemento
que une e separa as pessoas. Mas havia uma língua especial: a da
avó, a língua do amor incondicional pelo neto: “Amor, sim. Duvido
que no longo arco da minha vida alguém tenha me dado tanto,
um amor que durou mesmo quando se começou a suspeitar que o
professor Beganosti se enganara a meu respeito.” (p. 15).
O narrador, que fora menino fantasioso, nos conta sua história, que ganha interesse quando está com oito ou nove anos e tem
o seu primeiro deslumbramento ao ver na sacada do apartamento
em frente uma linda menina fazendo piruetas – perigosamente– no parapeito, como uma bailarina etérea, um anjo de tranças
negras:
“Como era linda sua figurinha contra as vidraças reluzentes
de sol, de braços erguidos, audaciosa nos saltos, tão exposta à
morte. Inclinei-me para que ela me visse bem, pronto a também
me atirar no vazio, caso ela caísse.” (p. 8).
Tudo nela era perfeição, até a bela e educada língua que
falava com a mãe, tão diferente do rude dialeto que se praticava
em sua casa pobre e inculta. Era a sua “senhora”, por
quem se bateria como um cavaleiro medieval com o
amigo Lello e sacrificaria a própria vida, se preciso.
Esse menino vai viver dedicado à imagem da menina, sua Eurídice – a amada de Orfeu –, a quem um
dia foi desafortunadamente resgatar do mundo dos
mortos. Starnone faz um comovente paralelo entre
esse mito e a história de seu protagonista, sujeito
sensível, marcado a ferro pelo destino. Assim, o fantasma da morte é um tema importante no romance,
desde as primeiras brincadeiras arriscadas e macabras do menino depressivo até a dura realidade de
suas perdas.
O amor e a onipresença da avó na vida do neto
nos remetem ao maravilhoso O Primeiro Homem,
autobiografia em que Albert Camus narra a infância
na Argélia, na casa, também pobre, comandada pela
avó, também analfabeta, que marcou profundamente sua infância. São histórias emocionantes do amor
de quem dá o que não tem. Disse Lacan que “amar
se aprende sendo amado”. É o que vemos nos dois
livros. E em especial em Línguas, em que, inconscientemente, o
menino transfere o amor, e mesmo a idolatria da avó, para a menina bailarina do espaço. O que a avó fez não tem comparação, pois,
sem nada pedir em troca (aliás, criticada pelo menino impiedoso
que muitas vezes dela se envergonhava), dotou-o da capacidade
infinita de amar. E de ser muito imaginativo para ludibriar a dura
realidade que o cercava.
Nesse despertar precoce para o amor, o menino tem a avó
como “cúmplice” de seu apaixonamento, e, como pessoa experiente, vai ajudá-lo, ouvi-lo. Escuta que é o diferencial na sua
infância. Essa avó feia, maltratada pelo tempo, pela pobreza e pela
humilhação de ter de viver como “serva” na casa do genro (que a
desrespeita horrivelmente), reduzida à condição de peça da casa,
tudo suporta por amor ao neto, objeto absoluto de sua dedicação
e razão de viver. Diz ele:
“A única com quem eu me mostrava nervoso ou angustiado
e que, malgrado minha ingratidão, continuou me apoiando todos
os dias enquanto viveu, com seu puro e simples estar nos espaços
designados – a cozinha, a pia, o fogão, a mesa, a janela –, sem
nunca exprimir a mínima dúvida sobre meu futuro clamoroso, foi
naturalmente minha avó. Minha entrada na universidade multiplicou sua sujeição em relação a mim e, ao mesmo tempo, toda
manifestação possível de idolatria.” (p. 69).
A mesma avó que o menino descobre linda quando jovem,
também amou e foi feliz. É essa carga simbólica do amor familiar
que lhe é transmitida, modelo para o futuro avô, uma vez que o
pai é quase figura ausente, sendo “substituído” por uma velha
fotografia do belo avô materno – com quem o menino se parecia
(motivo talvez da adoração da avó), idealizado por sua coragem,
representada por um bastão que porta garbosamente, e que, em
análise psicanalítica, tem muita significação.
Assim, os avós dão força moral e exercem papel duplamente
importante na estrutura emocional do neto que, diferentemente
de Orfeu, ao olhar para trás, resgatou seus mortos tornando-os
vivos na memória e não, espectros. E o menino, agora avô, vive o
luto eterno, nunca elaborado, fiel ao amor das duas mulheres que
marcaram a sua vida.