Setembro, 2025 - Edição 308

Pioneirismo na história da ABL

Mais de um século após sua fundação no Rio de Janeiro, em 20 de julho de 1897, a Academia Brasileira de Letras (ABL), pela primeira vez, em seus 128 anos de história, elegeu uma mulher negra. A escritora mineira Ana Maria Gonçalves, autora do best-seller Um Defeito de Cor, aos 54 anos, passou a ocupar a cadeira 33, que antes pertencia ao gramático, professor e filólogo Evanildo Bechara, que morreu em 22 de maio. Ela é a 13ª mulher a ser eleita, a quinta do quadro atual de acadêmicos.

Publicitária, escritora, roteirista e dramaturga, ao ser eleita com 30 dos 31 votos possíveis, Ana Maria declarou: “Entrar para a ABL é um acalanto na menininha leitora que eu fui e que ouviu que, na biblioteca pública do interior de Minas Gerais, já não havia mais livros para ela ler. Minha eleição representa a entrada de muitas outras pessoas que, como eu, não se viam nesse lugar. É um gesto simbólico, mas também transformador.”

A também imortal Lilia Schwarcz, historiadora e escritora, reforça o simbolismo dessa eleição: “Uma mulher negra que abre caminhos, autora de um livro que desfilou na Sapucaí, um dos livros mais importantes dos últimos 25 anos. Ela pensa o passado, interfere no presente e faz toda diferença no futuro. Ana Maria nos representa nesse Brasil que se quer, e precisa ser, mais plural, inclusivo e democrático.”

O colega de fardão Gilberto Gil também celebrou a chegada de uma mulher negra à Casa de Machado: “Isso representa que estamos vivos, ativos, nesse contexto variado de diversidades muitas e de todos os tipos: étnicas, culturais, religiosas etc.”, afirmou. A acadêmica Rosiska Darcy também festejou o que considera “um aperfeiçoamento da democracia”: “Trata-se de uma eleição histórica, não só porque ela é uma excelente escritora, mas também é uma mulher, e uma mulher negra. Esta é a primeira vez que a ABL elege uma mulher negra. Entramos numa fase de maior completude, e vamos cada vez mais nos aproximando do que é de fato a cultura brasileira.”

Mineira de Ibiá, Ana Maria Gonçalves nasceu em 1970. Começou a escrever contos e poemas desde a adolescência, sem chegar a publicar. A paixão pela leitura nasceu durante a infância, quando lia jornais, revistas e livros. Após 15 anos de atuação como publicitária em São Paulo, abandonou a profissão em 2002, indo morar na Ilha de Itaparica, na Bahia, para escrever o primeiro livro: Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim. Editado de forma independente, a obra esgotou seus exemplares por meio de divulgação na internet.

Depois da estreia, trabalhou cinco anos em Um Defeito de Cor, considerado um clássico contemporâneo. Foram dois anos na pesquisa, um na escrita e dois na reescrita desta saga de 951 páginas. Sucesso literário, a obra venceu o prêmio Casa de Las Américas (Cuba, 2007) e foi eleita por críticos convidados pelo jornal Folha de São Paulo como o livro mais importante do século XXI. Um dos mais longos romances da literatura nacional, conta a trajetória de uma menina nascida no Reino do Daomé e capturada como escrava aos 8 anos, até a sua volta à terra natal.

O livro, multipremiado, inspirou o enredo da Portela para o Carnaval 2024. A personagem principal é inspirada em Luísa Mahin, uma das lideranças da Revolta dos Malês, rebelião de escravos organizada na Bahia em 1835. Mahin também foi mãe do advogado Luiz Gama, um dos mais relevantes intelectuais negros do movimento abolicionista.

“Um Defeito de Cor é a história da luta preta no Brasil incorporada em uma mulher que enfrentou os maiores desafios imagináveis pra continuar viva e preservar suas heranças e raízes. A história de uma mãe, heroína, filha de África, que pariu a liberdade dessa nação”, explicou a autora.

Para o presidente da ABL, Merval Pereira, Ana Maria Gonçalves é uma das maiores escritoras brasileira dos últimos anos: “Ana Maria terá a função de demonstrar que a ABL está sempre querendo aumentar sua representatividade de sexo, cor, e qualquer tipo que represente a cultura brasileira. Queremos ser reconhecidos como uma instituição cultural que represente o Brasil, a diversidade brasileira. Ela aumenta nossa vontade de estar sempre presente nos movimentos sociais relevantes.”

A bibliografia de Ana Maria possui um caráter intimista e autobiográfico, resultado de pesquisas robustas sobre as heranças africanas no Brasil.

Já publicou contos em Portugal, Itália e nos EUA, onde também morou por oito anos e ministrou cursos e palestras sobre questões raciais. Foi escritora residente em universidades como Tulane (New Orleans, LO), Stanford (Palo Alto, CA) e Middlebury (Middlebury, Vermont).

Ana Maria também é dramaturga e roteirista de peças como Tchau, Querida! (2016), Chão de Pequenos (2017) e Pretoperitamar – O caminho que vai dar aqui (2019), esta última em parceria com a atriz Grace Passô, que aborda a trajetória do artista negro Itamar Assumpção.

Atualmente residente do Rio de Janeiro, roteirista (Rio Vermelho) e professora de escrita criativa, a acadêmica é cocuradora da exposição Um Defeito de Cor (MAR – Museu de Arte do Rio de Janeiro; MUNCAB – Salvador e SESC Pinheiros – SP), eleita como a melhor exposição de 2022.

Por Manoela Ferrari