Setembro, 2025 - Edição 308
Molduras, uma imersão no vórtice do insólito

A escrita de Kátia Bandeira de Mello, poeta e
ficcionista carioca há mais de duas décadas radicada nos
EUA e com passagem pelas artes plásticas em seus trabalhos de ilustração e pintura, vem na contramão do atual
panorama da literatura brasileira, que instituiu um certo
cânone, no qual a prevalência do contexto sobre o texto e
da militância/bandeiras sobre a linguagem, vem impondo
seus guetos e suas patotas, quando o autor adquire mais
importância que a obra, em sacrifício do valor intrínseco
da própria arte.
Em Molduras (Ed. Urutau, Lisboa, 2025), volume
que enfeixa mais de seis dezenas de contos, a autora
aprofunda seu olhar sobre os tristes tempos em todos os
trópicos, numa dimensão narrativa em que importam menos a verossimilhança e o
enredo e prepondera o espectro surreal. Por meio de um olhar singularíssimo que
atravessa as nuances das histórias para ressignificá-las em clave subreptícia, emerge
uma metamorfose visceral e um percurso labiríntico, comunicando o mesmo sentimento de Borges, para quem “a literatura é revanche de ordem mental contra o caos
do mundo” e “os labirintos são símbolos evidentes da perplexidade”.
Kátia não transita pelo óbvio, pelo lugar-comum ou pela comodidade de
histórias que vão desaguar num desfecho previsível, é acima de tudo uma autora
que persegue o nonsense e o insólito, fruto de uma consciência criativa de profunda
cartografia das vísceras do insondável e dos escaninhos do imponderável, instâncias onde reside um mundo além mundo, o absurdo que constitui a própria condição humana, que, à moda de um Ionnesco, ela maneja, com agudíssimos recursos
e imensa riqueza plástica.
Na esteira de uma percepção multissensorial, há uma autora que dialoga
não só com seus gurus estéticos, mas segue flertando, ou traçando paralelos com o
multifacético campo da criação com seu estilete semiótico. Numa salutar projeção
intertextual, sua ficção, análoga à linhagem de sua produção poética, realiza-se em
perfeita simbiose, nutrindo-se de outras categorias artísticas, como o cinema, a pintura, a fotografia, o teatro, a dança, tal sua ambientação por esses territórios, onde
o tangível e o onírico se interpenetram numa combinação verbo-imagética, dando
vez ou voz ao que parece inaudível, mas surge do esconso universo que nos habita.
E nesse diapasão, ao subverter, ou abstrair-se, do excesso de realidade transmutando-a no suprarreal que culmina numa beleza convulsiva à moda de um Breton, a
autora apreende um cenário de mundividências, para muitos inalcançável, mas que
se instaura como signo de indignação.
Como assegura a escritora Eltânia André no prefácio dessa obra pungente
e heterodoxa, “para se chegar ao umbigo do texto, recomendo o embarque no jogo
metalinguístico, pois quase não há acaso, as palavras e acontecimentos interseccionam-se estrategicamente com o intuito de provocar, de romper padrões, de arriscar”.
E lê-la, recomenda o crítico e ensaísta Sérgio Guimarães de Sousa, “é penetrar na
singularidade de algo verdadeiramente novo”, e isso, sem dúvida, é um alento e um
frescor, em meio à requentada produção ficcional contemporânea, que bafeja o mais
(ou seria o menos?) do mesmo.
Autora, dentre outros, de Colisões Bestiais (Particula) res (Ed. Confraria
do Vento, Rio, 2013), Jogos (Ben) ditos e Folias (Malditas) (Ed. Confraria do Vento,
Rio, 2017), Caderno de Artista (Ed. Confraria do Vento, Rio, 2022), A Patafísica do
Quadrado – Um romance na rota das galochas (Ed. Confraria do Vento, Rio, 2022),
Bromélias e Outras Naturezas (Ed. Gato Bravo, Portugal, 2022), Experimentações
Poéticas sobre Coleridge (Ed. Húmus, Portugal, 2022) e Flaco, O Coruja (Ed. Philos,
2024), Kátia Bandeira de Mello detém uma escrita original e versátil, umbilicalmente renovadora em seus âmbitos formal e temático, sem os cacoetes de vanguardas
tardias – como resultado de uma leitura não apriorística do individual ou coletivo – corroborando aquela sensação descrita por Júlio Cortrázar “En suma, desde
pequeño, mi relación con las palabras, con la escritura, no se diferencia de mi relación con el mundo en general. Yo parezco haber nacido para no aceptar las cosas
tal como me son dadas.”
Excerto:
“…Piglia me segura pela mão e leva para um mergulho no diário de
Gombrovicz, o que dizem esses homens, qual a distância entre eles, o papel e eu
que nada tenho a ver com a realidade deles, eu que vivo a milhares de quilômetros
e anos daquela Buenos Aires e me sento para aguardar uma nova guerra cujo fantasma se aproxima, sussurra no íntimo, estamos a saber desta nova guerra que é
uma extensão da anteriores, há um parentesco entre elas, fluem tal e qual rios, os
exércitos entram em saem das caixas à guisa de fósforos, basta acender a chama e
os fósforos marcharão, basta apertar os botões e drones lançarão as bombas e estará
tudo acabado, de um povo ao outro, tudo estará acabado.” (Pág. 172)