Julho, 2025 - Edição 307
As duas revoltas de José Quirino

Em seu novo romance, Ronaldo Costa Fernandes aposta na
força poética das palavras. Faz do épico/lírico O Ano da Revolta
dos Desvalidos (RJ: 7Letras, 2024), obra cuja força reside na escolha
do léxico, no fino trabalho de ourivesaria do campo semântico.
Cada vocábulo escolhido com precisão segue a lição de Flaubert
da “palavra certa no lugar certo”. Esse é o primeiro aspecto que
chama a atenção do leitor. É um desdobramento da sua vasta e
premiada poesia, densa e ao mesmo tempo delicada e refinada.
Originalíssima.
Dando continuidade à saga dos acontecimentos históricos do
seu estado natal, o Maranhão, Ronaldo que, com igual maestria, já
transformara em ficção a presença do padre Vieira em Vieira na Ilha
do Maranhão (2019) e os episódios da revolta da Balaiada (2021),
nesse romance sintético, com capítulos curtos, conta a história da
revolta liderada por Manuel Becker, conhecido popularmente como
“Bequimão”, contra as medidas do governo português, o estanco,
que prejudicava os produtores locais, em 1865. E, paralelo a isso, o
comovente drama familiar de José Quirino, personagem riquíssimo
em aspectos humanos e psicológicos.
O romance se desenvolve com flashbacks revelando o passado desse homem desterrado, sem pertencimento à ilha de São Luís,
onde há muito vive. Chegou a ser um religioso em Portugal, sua
pátria (o que lhe dá verossimilhança quanto à sua cultura e pensamento intelectual). Para se definir, utiliza a metáfora da água, tanto
do mar quanto do rio Coti, que o cerca: “Fico pensando quantos rios
me banham” (p. 71). E para descrever a mulher Teodora:
“Teodora era um rio violento, desses que têm cachoeiras e
quedas d’água. Suas águas eu não poderia represar. Tinha consciência de que lidava com um rio tumultuoso e indômito.” (p. 72).
E mais outros rios:
“Ainda outros rios me habitam: o rio civil e colono, o rio
comerciante e de vereança, o rio das ruas. O que são as ruas senão
rios secos feitos de pedra, areia e barro? Que são minhas pernas
senão um remo que me leva a um canto e outro da cidade? Que são
as casas dos colonos, as mais aristocráticas, senão galeões ancorados no grande porto da cidade? A primeira grande multidão não vi
em Lisboa, mas aqui mesmo, mais de trezentas pessoas na praça
maior, em frente da câmara, do palácio e da igreja dos roupetas.
Trezentos homens armados com espada, pau e pedra, vociferando
contra os jesuítas e a governança. Percebi que ali estava não mais os
rios afluentes e nervosos, pequenos e retorcidos das ruas da cidade,
mas o império oceano da fúria.” (p. 72).
Nessas belíssimas passagens em que a exploração do campo
semântico da água atinge múltiplas significações, vemos o compromisso do autor com o fazer poético. O resultado desse garimpo é a
riqueza do texto, elevando-o ao mais alto patamar literário.
Quirino, em sua fala reflexiva e sensível, merece destaque
desde as primeiras páginas quando fala da filha única, a bela Maria,
dolorosamente chamada de “sombra”:
“Minha filha é apenas uma sombra de gente, que se mexe, se
alimenta, defeca, urina, urra pelas noites de lua como uma cadela,
mas não tem consciência de que vive. Talvez eu devesse dizer que
ela é uma sombra que tem consciência de que não passa de uma
sombra. Ou ainda dizer que ela tem consciência – porque os sentimentos também pensam, os sentimentos nos fazem pensar, porque
o gozo e a dor sobem até a cabeça e temos consciência da dor e do
gozo – e bem dizia que ela tem consciência de que é um ser vivo, um
ser destroçado, imperfeito, nulo, inservível para a vida da cidade,
a vida dos comerciantes, dos barqueiros, dos padres e das autoridades. Mas ela sabe que é minha filha e que é diferente das outras
mulheres.” (p. 6).
O cerne da questão do romance está na vida frustrada desse
homem, marido da mulher ausente e pai da filha duplamente ausente que muito o fazem sofrer e que, “como as marés”, um dia
encheram sua vida para logo depois a esvaziarem. E é no vazio da
sua vida murcha e solitária de pai cuidadoso que vê a filha infantilizada, “idiota”, cair de amores pelo também adolescente “idiota”
Abelardo:
“O rapaz era tão idiota como a filha, percebeu José Quirino.
Ele não ia deixar que dois idiotas se casassem, fossem morar sozinhos e tivessem filhos idiotas, prolongando a permanência de idiotas na ilha.” (p. 22).
O nome Abelardo nos remete ao sábio filósofo da Idade Média,
Abelardo, apaixonado pela discípula Heloísa, os quais viveram um
romance apaixonado – e trágico – pois contrário à vontade dos pais
da jovem; remete-nos ainda com mais propriedade ao amor puro
dos jovens Paulo e Virgínia, personagens do romance homônimo de
Bernardin de Saint-Pierre, clássico da literatura francesa, de 1787.
Livro encantador inspirado nas ideias de Rousseau, que se tornou
mítico pelo tema da volta à natureza como refúgio dos apaixonados.
Há, portanto, dois movimentos na narrativa de Ronaldo: um
em direção ao mundo exterior à casa de José Quirino, mostrando
o conflito entre o governo e os rebelados com a prisão do herói
Bequimão; e outro, ao interior da sua casa e, mais ainda, ao interior
dele mesmo, um anti-herói. Este, subjetivo e sutil, transformando o
acontecimento sugerido no título quase um pano de fundo, painel
do tempo em que a ação se desenrola.
Com o discurso ora em terceira ora em primeira pessoa, a
narrativa aproxima e distancia Quirino alternando-o como narrador
e personagem:
“O comércio da leitura com os padres me faz um bem danado, mas ao mesmo tempo me frustra porque me retira de minhas
ambas as casas, de taipa e alvenaria, e me coloca no vácuo. Sou
assim vizinho do etéreo, do nada, do impermanente e do risível –
alguns colonos riem de mim e pensam que tenho miolo mole e que
a doença de Maria ela herdou de mim, embora não leia e desconheça quem seja Sêneca.” (p. 40).
“Em algum momento, José Quirino andou pelas terras do
Mearim e também teve a alma doce e industriosa como a de Manuel
Bequimão. (...) Naquele tempo era um homem só, nem conhecia a
sua futura esposa.” (p. 43).
Quirino vive solitário na casa enorme, pois a criada dona
Raimunda vive no seu canto e não é lá muito certa das ideias.
Chegou a viver no mundo da desrazão:
“Houve uma época em que pensei que havia perdido dona
Raimunda. Ela variava, não sabia que era dona Raimunda e me
perguntou o que fazia em casa. Desconheceu a razão e Maria, quis
desalimentar-se do mundo. Ficou muda, e quando falava, dizia
que a trouxeram num navio negreiro, que seus pais eram negros da
África, e podia-se bem ver a pele leitosa de dona Raimunda enlouquecer os desvios da razão.” (p. 69).
Mas dona Raimunda também tem voz: depois de narrar o seu
passado de sofrimento, diz:
“Apareceu por essa época o senhor José Quirino que tinha
a filha avariada e queria uma senhora que cuidasse da menina.
Afeiçoei-me aos Quirinos, por esse tempo ainda dona Teodora não
havia abandonado a morada.” (p. 86).
Nesse tempo da chegada dos negros africanos escravizados
para a vida miserável que os aguardava, tudo era pesadelo na história do Brasil-Colônia onde vivia essa gente degredada e sem valor.
Pesadelo que se torna também metáfora do desaparecimento da
filha de Quirino, o que nele reafirma e institui mais do que nunca
a função do pai. Pai preocupado, amoroso, diligente, que abdica
da guerra na cidade sitiada em favor da guerra particular, na busca
mítica da filha. É, portanto, de perda, culpa e reparação que trata
a vida do atormentado e bom Quirino; da indiferença da natureza
selvagem ante um ser destroçado, já sem “o ímpeto das águas turbulentas” de outros tempos; e da força avassaladora e impiedosa da
floresta que atrai e engole os que nela se aventuram, tornando-se
lendas...
Assim, José Quirino busca nas profundezas da floresta a filha
amada e nas profundezas da sua alma o sentido da paternidade.
Uma longa viagem do si ao si mesmo, andando em círculos