Maio, 2025 - Edição 306
O menino da sua avó

Tinha muitos janeiros nas costas, mas continuava a ser o
menino da sua avó. Já tivera uma vida inteira diante de si, mas não
esquecia o grande momento que um ser humano só pode ter uma
vez na vida: o despertar do primeiro amor. Assim é a história do
narrador de Línguas (2021), de Domenico Starnone (SP: Todavia,
2024), romance encantador pelo tom nostálgico, melancólico, que
tem como tema o relacionamento familiar, especialmente o do
neto com a avó materna. E o grande amor de infância.
A exemplo de outros títulos minimalistas e metonímicos –
de grande sucesso entre o público leitor do mundo inteiro, como
Laços, Segredos, Assombrações (no qual fala da experiência do avô
que se vê na obrigação de cuidar por poucos dias de um netinho
terrível de quatro anos) – Línguas tem múltipla significação. O narrador-personagem explora desde o dialeto napolitano de sua gente
até o estudo de Glotologia
que faz na universidade. A
língua associada à classe
social e ao nível intelectual;
a língua como elemento
que une e separa as pessoas. Mas havia uma língua
especial: a da avó, a língua
do amor incondicional pelo
neto: “Amor, sim. Duvido
que no longo arco da minha
vida alguém tenha me dado
tanto, um amor que durou
mesmo quando se começou
a suspeitar que o professor Beganosti se enganara a
meu respeito.” (p. 15).
O narrador, que fora
menino fantasioso, nos
conta sua história, que
ganha interesse quando
está com oito ou nove anos
e tem o seu primeiro deslumbramento ao ver, na
sacada do apartamento em
frente, uma linda menina
fazendo piruetas – perigosamente – no parapeito,
como uma bailarina etérea,
um anjo de tranças negras:
“Como era linda sua
figurinha contra as vidraças
reluzentes de sol, de braços erguidos, audaciosa
nos saltos, tão exposta à morte. Inclinei-me para
que ela me visse bem, pronto a também me atirar no vazio, caso ela caísse.” (p. 8).
Tudo nela era perfeição, até a bela e educada língua que falava com a mãe, tão diferente
do rude dialeto que se praticava em sua casa
pobre e inculta. Era a sua “senhora”, por quem
se bateria como um cavaleiro medieval com o
amigo Lello e sacrificaria a própria vida, se preciso. Esse menino vai viver dedicado à imagem
da menina, sua Eurídice – a amada de Orfeu –,
a quem um dia foi desafortunadamente resgatar
do mundo dos mortos. Starnone faz um comovente paralelo entre esse mito e a história de seu
protagonista, sujeito sensível, marcado a ferro
pelo destino. Assim, o fantasma da morte é um
tema importante no romance, desde as primeiras brincadeiras arriscadas e macabras do menino depressivo até a
dura realidade de suas perdas.
O amor e a onipresença da avó na vida do neto nos remetem
ao maravilhoso O Primeiro Homem, autobiografia em que Albert
Camus narra a infância na Argélia, na casa, também pobre, comandada pela avó, também analfabeta, que marcou profundamente
sua infância. São histórias emocionantes do amor de quem dá o
que não tem. Disse Lacan que “amar se aprende sendo amado”. É
o que vemos nos dois livros. E em especial em Línguas, em que,
inconscientemente, o menino transfere o amor, e mesmo a idolatria da avó, para a menina bailarina do espaço. O que a avó fez não
tem comparação, pois, sem nada pedir em troca (aliás, criticada
pelo menino impiedoso que muitas vezes dela se envergonhava),
dotou-o da capacidade infinita de amar. E de ser muito imaginativo
para ludibriar a dura realidade que o cercava.
Nesse despertar precoce para o amor, o menino tem a avó
como “cúmplice” de seu apaixonamento, e, como pessoa experiente, vai ajudá-lo, ouvi-lo. Escuta que é o diferencial na sua
infância. Essa avó feia, maltratada pelo tempo, pela pobreza e pela
humilhação de ter de viver como “serva” na casa do genro (que a
desrespeita horrivelmente), reduzida à condição de peça da casa,
tudo suporta por amor ao neto, objeto absoluto de sua dedicação e
razão de viver. Diz ele:
“A única com
quem eu me mostrava
nervoso ou angustiado
e que, malgrado minha
ingratidão, continuou
me apoiando todos os
dias enquanto viveu,
com seu puro e simples estar nos espaços
designados – a cozinha, a pia, o fogão, a
mesa, a janela -, sem
nunca exprimir a mínima dúvida sobre meu
futuro clamoroso, foi
naturalmente minha
avó. Minha entrada
na universidade multiplicou sua sujeição
em relação a mim e,
ao mesmo tempo, toda
manifestação possível
de idolatria.” (p. 69).
A mesma avó
que o menino descobre linda quando
jovem também amou
e foi feliz. É essa carga
simbólica do amor
familiar que lhe é
transmitida, modelo
para o futuro avô, uma
vez que o pai é quase figura ausente, sendo
“substituído” por uma velha fotografia do belo
avô materno – com quem o menino se parecia
(motivo talvez da adoração da avó), idealizado
por sua coragem, representada por um bastão
que porta garbosamente, e que, em análise
psicanalítica, tem muita significação.
Assim, os avós dão força moral e exercem papel duplamente importante na estrutura emocional do neto que, diferentemente
de Orfeu, ao olhar para trás, resgatou seus
mortos tornando-os vivos na memória e não,
espectros. E o menino, agora avô, vive o luto
eterno, nunca elaborado, fiel ao amor das duas
mulheres que marcaram a sua vida.