Maio, 2025 - Edição 306

O caso das três gameleiras

“Contei-lhes a minha história. Não acreditaram.
Agora eu a conto ao senhor – e dificilmente posso esperar que dê a ela mais crédito do que o fizeram os alegres pescadores de Lofoden.”
Edgar Allan Poe, “Uma descida no Maelström”, in Contos de Imaginação e Mistério....


Às vésperas dos meus 82 anos, contei ao meu fraterno amigo escritor Napoleão Valadares o caso das Três Gameleiras. Estávamos nos lembrando de histórias antigas da nossa infância – a dele em Arinos e a minha em Mariana. Era num bar, na Asa Sul de Brasília, onde tomávamos cerveja e saboreávamos queijo de coalho, assado no espeto. Meados de dezembro, fim de tarde, boca da noite. Uma chuva miúda caía lá fora.

– E então, compadre, como é o caso das Três Gameleiras, que você ficou de me contar um dia?
Enchi nossos copos e comecei, de bom grado.
– Compadre, vou lhe contar. Na metade da estrada de rodagem entre Mariana e Ouro Preto, havia um local numa elevação, onde se viam três árvores alinhadas, altas, sombrias. Eram as chamadas Três Gameleiras. A gameleira, você bem sabe, é uma árvore grande, também chamada figueira, fícus. Serve para fazer gamelas e outros objetos de casa.
– Conheço. Às vezes chamada gameleira-brava.
– Isso. Aquelas três eram, certamente, gameleiras-bravas. É um caso de assombração, compadre. De assombração! Vamos até tomar outra cerveja.
– Vamos chamar o garçom.

Então contei o caso para o velho amigo. Agora vou contar para vocês. Não vou espichar conversa, não, fiquem sossegados. Eu ouvi a história, pela primeira vez, quando era menino e passava férias na fazenda São João, de Nico Mol, amigo dos meus pais. A fazenda, muito antiga, de duzentos anos, com capela e tudo, ficava num distrito, no município de Mariana. Pegávamos o trem de ferro às cinco horas da manhã. A máquina bufava e apitava. Seu pequeno sino dourado tilintava, chamando os passageiros. A composição, da Estrada de Ferro Central do Brasil, partia, barulhenta. Uma viagem simples, de umas cinco horas, talvez, mas iluminada por magia, encantamento e novidade, até aventura. Apeávamos na estação de Gesteira, onde já estavam os cavalos mansos que nos levariam à fazenda, passando por mata-burros, com os acompanhantes abrindo porteiras. Ficávamos na grande fazenda de Nico e Ninita Mol por vários dias. Um casal sem filhos, mas muitos sobrinhos. Para mim e meus irmãos, era um mundo encantado, cheio de novidades, carros de bois, curral, moinho (“munho d’água”), monjolo, paiol, amplo pasto, a casa de doces, rapaduras, queijos e requeijões...

Uma noite, depois do jantar, eu e meus dois irmãos descemos, para ouvir histórias dos empregados, num lugar junto ao curral, com seu cheiro de boi e estrume. Noite estrelada, mas sem lua, com mugidos de bois e vacas. Os peões acocorados em volta de uma fogueira, bebendo cachaça, descansando da lida do dia. Uma risada aqui, outra ali. Na escada, algumas moças vinham assuntar, curiosas.

Fumando seu cigarro de palha, Zé Cassiano, o mais velho, era o líder da peãozada, afrodescendente, capataz experiente, nascido naquelas terras. O fogo crepitava na fogueira. Um do círculo, Chico de Tanázio, também pitando e tomando mais um trago, pediu:
– Zé Cassiano, conta um caso.
– Que caso?
– Qualquer um. Pode ser o das gameleiras, lá em Mariana.
Esses meninos não devem conhecer.
Tomando mais uma lapada de pinga, Zé Cassiano deu uma cutucada no chapéu, pigarreou e começou.

Uma noite, muitos anos atrás, ele comandava uma tropa de burros de carga, bem carregados, para a venda de queijos, requeijões, goiabada-cascão, frutas cristalizadas, fumo-de-rolo e outros produtos. Arrancharam por alguns dias no Rancho do Sô Catinho Camêllo, em Mariana.

Saindo de Mariana, a tropa tomou o rumo de Ouro Preto, passando pela ponte de cimento e pelo Córrego do Catete. Zé Cassiano foi indo, com os companheiros. Era de noite. Eles queriam ver o dia amanhecer em Ouro Preto. Era coisa de 11 horas da noite quando Zé Cassiano e seus auxiliares tomaram o rumo da estrada, em demanda da antiga Vila Rica, boa praça para fazer negócio.

Quando se aproximaram das Três Gameleiras, a ventania começou a apertar e assoviar. Um vento frio assoprou, os tropeiros enfiaram mais os chapéus nas cabeças e ajeitaram as rudes capas. Olharam para as árvores, lá no alto, mas bem próximas de seus arregalados olhos. O céu, uma escuridão, estrela nenhuma e muito menos lua.

Começaram a ouvir, na toada do vento, uns sussurros, lamentos. As gameleiras se agitavam. Corajosos, mas com inconfessável medo, os homens não conseguiam tirar os olhos daquelas sombrias árvores. Julião, com voz meio sumida, declarou ter visto uma forca no alto da gameleira do meio. Todos se arrepiaram. Zé Cassiano levantou a aba do chapelão e olhou, se arrepiou, não disse nada, esporeou o cavalo. Os sussurros e lamentos aumentaram. O vento assoviava feio. As gameleiras balançavam, assombrosamente. Gritos e sussurros. Geraldo de Nhazinha meio que gaguejou:
– Zé Cassiano, vamos apertar o passo!
Assustados, os tropeiros desviaram o olhar daquele sinistro e fantasmagórico lugar de gritos e gemidos. Julião repetia, nervoso, que tinha visto a forca.

As Três Gameleiras, no meio da forte ventania, e os gemidos (dos enforcados?) foram ficando para trás. O céu era um breu. Ouro Preto ainda estava a légua e meia. Cada viajante pegou sua garrafa, presa à sela, junto da matula, e emborcou um bom trago de cachaça, jogando um gole “pro santo”, por via das dúvidas. Cruz-credo! As gameleiras das assombrações!

Enfim, chegaram a Ouro Preto, entrando pelo antigo Palácio dos Governadores, na Praça Tiradentes, em frente ao Museu. O dia raiava, clareava.
– Pois é, compadre. Assim foi a história que ouvi de Zé Cassiano, há décadas, lá na fazenda de Nico Mol. Até hoje essas Três Gameleiras não saíram do meu imaginário de assombramentos. Quando eu passava por elas, de dia ou de noite, de carro ou de ônibus, mal olhava. Pode ser conversa. Ou não. Nunca se sabe, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia, já disse o poeta. Melhor pedir mais uma.
– Boa ideia, compadre. Garçom, por favor, mais uma. Pela porta do bar, entrou um vento frio, muito frio. Não quero exagerar: um frio meio arrepiante. Não era inverno, não era tempo de frio. Desci a aba do chapéu panamá que a colega Kori Bolivia trouxe do Equador e me deu. Esse forte e surpreendente vento frio vinha fora de hora. Era mais forte que um vento de chuva miúda.
Do fundo da memória, me veio um arrepio. Aquele vento forte e frio parecia vir da estrada de terra de Mariana a Ouro Preto, nas lonjuras do tempo, dos meus outroras. Parecia vir das assombrações daquelas Três Gameleiras... Este mundo é um mundaréu misterioso.

Por Danilo Gomes, membro da Academia Mineira de Letras