Maio, 2025 - Edição 306

Miguel Torga

Lembra-me o genealogista Paulo Stuck Moraes, do Colégio Brasileiro de Genealogia, que em janeiro fez trinta anos da morte de Miguel Torga. De seu nome, Adolfo Correia da Rocha. Transmontano, era natural de São Martinho de Antas, nas cercanias do Douro, o rio quase mítico que corta as terras do norte de Portugal. Terras que ressurgem mágicas da escrita de Torga. Faleceu em Coimbra, a 17 de janeiro de 1995.

Há anos visitei São Martinho de Antas. Vi a casa que foi dele, o que restou do negrilho na praça, um trecho da serra onde ia caçar perdizes e que sua pena transformava em montanhas pujantes. Encerrei o périplo no cemitério da igreja local, onde em campa quase anônima repousam o autor e a esposa. Ele, repito, há 30 anos.

Sua obra é humanista, no sentido de reconhecer ao homem, ao indivíduo que trabalha a terra, o protagonismo na existência em meio à natureza agreste da paisagem duriense que lhe moldou o imaginário e a visão de mundo. É essa visão de mundo, assim externada, que parece levar a interpretações de “revolta” do autor contra a divindade, uma das possibilidades de interpretação. Mas, para Torga, o divino era percebido sob outra ótica: a da divindade da terra, nela integrado o homem que exaltou na sua literatura, porque interagindo com a terra justificava o homem sua própria existência como ser humano.

Em tempos de revisionismos, de rotulações e reinterpretações, é lícito indagar: terá a obra de Miguel Torga resistido à passagem do tempo? Aquele Portugal rural e quase mítico (é a palavra que me vem ao pensar no universo torguiano), aquele país que é o retratado por ele, existirá ainda? Ou por outra, a sua obra ficcional ainda fará sentido? A resposta que há tempos me ocorre é: que importa? A literatura de Miguel Torga retrata um instante histórico-geográfico, um ponto da evolução histórica da sociedade que o produziu e por ele eternizada nos contos e, em certa medida, nos demais escritos que deixou. Universal não só por enfocar a(s) sua(s) aldeia(s), mas por enfocá-la(s) como o historiador que, antes de se preocupar com as linhas-de-força determinantes de um certo processo histórico, ocupe-se de um determinado acontecimento ou um determinado estágio da evolução de uma instituição. Um retratista, insistindo na imagem que usei acima.

Adolfo Correia da Rocha era médico otorrinolaringologista. Não era raro vê-lo pelas ruas de Coimbra casmurro e ensimesmado, relembram contemporâneos. Alguns relatos ouvi da boca de conterrâneos seus nesse sentido. Traço de caráter, sem dúvida; mas sem dúvida outra razão havia: certamente ia meditando o profissional médico nas dores humanas com que diariamente se deparava e que por ofício tratava, e que certamente serviam de material ao escritor Miguel Torga para seus caracteres literários. Ou para os poemas e reflexões enfeixados nos Diários e que revelam a agudeza de sua percepção de mundo.

Na rua Miguel Torga, em São Martinho de Antas, fica o Espaço Miguel Torga, que tem como principal função a divulgação da obra do escritor. Funciona como centro cultural e tem agenda diversificada, como se vê do site. Integra seu acervo o livro Miguel Torga: Costados, de Paulo Stuck Moraes, que tive o prazer de prefaciar, concluindo que “esse segmento da obra de Torga é o espelho de uma época e de um modo de vida que nos ajuda a entender o espírito de um povo”. O que confere a sua obra um caráter imorredouro.

Por Getúlio Marcos Pereira Neves, membro do PEN Clube do Brasil.