Março, 2025 - Edição 305

Camões, qual a ortografia?

Um dos temas fundamentais no Vº centenário do nascimento de Camões deverá incidir na definição da ortografia a adotar nas reedições d’Os Lusíadas, dos sonetos, das odes e das elegias para obterem a maior repercussão no público de todos os países de língua portuguesa. O Vº centenário do nascimento de Camões é uma efeméride que não se deverá limitar aos ajustes de contas, às interpretações circunspectas de eruditos agarrados ao pescoço dos pelicanos e a outras questões de interesse restrito. O principal objetivo destas comemorações deverá estimular uma aproximação o mais extensa possível d’Os Lusíadas, dos sonetos, das odes e das elegias junto do público mais diversificado e de todos os países de língua portuguesa.

É ponto assente que os primeiros biógrafos e os primeiros comentadores de Camões não registraram, com o devido rigor, as datas e os fatos indispensáveis para um conhecimento inquestionável do dia e do local do nascimento, das origens familiares, dos estudos que fez e onde os fez, das razões que determinaram a deslocação para África e para o Oriente e, ainda, do próprio dia em que faleceu.

Assim se construíram inúmeras versões tendenciosas, destinadas a obter exaltações nacionalistas, efeitos políticos e finalidades religiosas. Muitas destes propositados embustes foram desmascarados por Aquilino Ribeiro, na obra Camões Fabuloso e Verdadeiro – cuja última edição tive a honra de prefaciar – e onde, capítulo a capítulo, procurou esvaziar os mitos, os lugares comuns, as ideias convencionais que se consolidaram, ao longo dos séculos.

Mas regressemos a um dos objetivos fundamentais neste centenário: alcançar a maior repercussão da obra de Camões. Qual a ortografia a adotar nas edições destinadas ao grande público? Está mais do que provado que, em 1572, as duas edições d’Os Lusíadas se encontram repletas de gralhas e outras imperfeições de composição. O próprio Camões procedeu, em 1572, a uma revisão, mas não contemplou todos os erros detectados.

Numa longa entrevista que me concedeu, para o Diário de Notícias, David Jackson, professor da Universidade de Yale e estudioso de renome internacional de Camões, pormenorizou os resultados das pesquisas que realizou ao consultar 34 exemplares d’Os Lusíadas, editados em 1572, existentes não só em Portugal e no Brasil, mas em bibliotecas públicas e privadas dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Itália, da Espanha, da França e da Alemanha. Ao todo encontrou mais de duas mil diferenças.

Feitas as devidas correções e ao estabelecer a autenticidade do texto, é inevitável perguntar, uma vez que continuam ao rubro as polêmicas em redor do Acordo Ortográfico de 1990: qual a ortografia a adotar, numa edição de 2025, que não se pretende monumental, nem faustosa como, por exemplo, a do Morgado Mateus, mas de uso prático e cotidiano?

Até agora o Acordo Ortográfico de 1990 – que pretendia atingir uma unificação em todos os países de língua portuguesa – falhou no seu objetivo primordial. Dividiu ainda mais estes países, criando três normas ortográficas: a do Brasil, a de Portugal e a dos restantes países africanos e asiáticos que não implantaram o Acordo, apesar de o terem subscrito. Quando haverá um consenso básico entre linguistas, filólogos, acadêmicos, jornalistas, escritores e tradutores? Um consenso, também, alargado a outras áreas universitárias e aos setores políticos e empresariais dos vários países de língua portuguesa?

A situação é tanto mais grave e complexa quanto as palavras em Camões têm o poder fascinante de dialogar com os outros; para intensificar as aproximações e resistir aos extremismos políticos e partidários; para enfrentar o discurso de ódio e violência que, a cada instante, se acentua nas redes digitais. Camões invocou n’Os Lusíadas “a paz angélica e dourada” e a “paz áurea, divina”. A urgência do combate, perante as guerras inevitáveis, impôs a remoção d’“a ferrugem da paz”. Celebrou e com toda a energia a “aliança da paz e da amizade”, para que “firmemente permaneça” “o nó da amizade”, em face de “toda a adversidade”.

Este é um dos legados de Camões, expresso através d’Os Lusíadas, para a formação inadiável de uma consciência coletiva enraizada nos princípios mais nobres da solidariedade humana.

Por António Valdemar