Março, 2025 - Edição 305
Brincando com a língua: a troca de sons

Um homem chamado William A. Spooner (1844-1930) gostava de
trocar os sons das palavras, como “You have tasted two worms” (Você provou duas minhocas) e “You have wasted two terms (Você desperdiçou dois
trimestres) ou “Queer Dean” (Estranho deão) por “Dear Queen” (Querida
Rainha). É por causa de Spooner que esse fenômeno em inglês tem o nome
de spoonerism, em homenagem ao seu cultor.
Em francês, o mesmo fenômeno tem o nome de contrepèterie,
como em “Trompez sonnettes” (Enganai campainhas) por “Sonnez, trompettes” (Tocai, trombetas).
Não é necessário, contudo, que o spoonerism ou a contrepèterie
tenham significado: “Pauvrice n’est pas vité” é frase “spoonerist” ou “contrepétée”, sem sentido, de “Pauvreté n’est pas vice” (Pobreza não é vício).
Uma das hipérteses francesas mais conhecidas é de autoria atribuída a
Rabelais, o autor de Gargantua: “Femme folle à la messe” (Mulher maluca
na missa) – “Femme molle à la fesse” (Mulher de bumbum mole). Essa
frase foi divulgada equivocadamente como se fosse exemplo de antístrofe,
e não de contrepèterie. A antístrofe consiste num trocadilho em que se
altera a ordem de palavras repetidas para mudar o sentido, como em: “trabalhar para viver não é viver para trabalhar”, por exemplo.
Em português, à falta de um nome popular, esse fenômeno é cientificamente chamado de hipértese intervocabular. A hipértese é o nome que
tem a comutação de sons à distância. A metátese normalmente consiste
na troca de sons no interior de um vocábulo, na mesma sílaba como o lat.
semper, que deu sempre, em português, ou como deperdar por depredar,
ou como pregunta por pergunta, ou como portagonista por protagonista,
por exemplo. Quando a troca de sons ocorre entre sílabas diferentes, a
metátese tem o nome de hipértese, como a pronúncia popular tauba por
tábua, ou como areoporto em vez de aeroporto. É a hipértese (que os estudiosos consideram sinônimo de metátese) que explica prolações como
estrupo, largato, falcudade, entre outras, corriqueiras na fala descontraída,
por estupro, lagarto ou faculdade.
Esse fenômeno da hipértese intervocabular ficaria restrito à gramática ou a uma ou outra frase esporadicamente encontradiça na fala de
algum brincalhão, como em transmimento de pensassão por transmissão
de pensamento, não fosse o uso literário que dele fizeram autores como
Millôr Fernandes e Paulo Leminski, por exemplo.
Do primeiro é a fábula “A Raposa e o Bode”, publicada na revista O
Cruzeiro, em 1961, e no livro Fábulas Fabulosas (Rio de Janeiro: José Álvaro,
1964, p. 133-4, com o título “A Baposa e o Rode”, e, mais tarde, em Trinta
Anos de Mim Mesmo (Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1972, p. 98), da qual
reproduzimos as duas frases iniciais e a moral: “Por um asino do destar,
uma rapiu caosa num pundo profoço do quir não consegual saiu. Um
rode, passi por alando, algois tum detempo, vosa a rapendo, foi mordado
pela curiosidido.” “Moral: Jamie confais em qua estade em dificuldém.”
De Paulo Leminski é o “Diversonagens suspersas” do livro Melhores
Poemas (São Paulo: Global, 1996, p. 136), que alguns gramáticos citaram
como exemplo de “palavra-valise”. A palavra-valise (ou palavra-portmanteau, palavra entrecruzada ou palavra-cabide) é a redução de uma sequência de palavras numa só ou a fusão de partes de palavras diferentes, como
bit (oriunda da expressão inglesa binary digit), ou como, na brincadeira
de crianças, rinocerafa, isto é, “filho de rinoceronte com girafa”, ou como
uma palavra já existente, supostamente formada por outras, com dupla
leitura, como ex(orbita) nte, que, em Cassiano Ricardo, no livro Jeremias
Sem-Chorar (Rio de Janeiro: José Olympio, 1964), significa “exorbitante” e
“ex-orbitante” (que não está orbitando, que está fora de órbita), ou como
solpicado (salpicado de sol). Além da hipértese intervocabular, Paulo
Leminski utilizou também a metátese intravocabular, como no poema
concreto do livro Caprichos e Relaxos, em que joga, em 19 linossignos
(isto é, signos em linha, neologismo inventado por Cassiano Ricardo,
como oposição à ideia de verso), com os sons do vocábulo metamorfose,
a partir de “materesmofo”, passando por “mesamorfeto”, “termosefoma” e
“motormefase”, entre outros falsos lexemas, até chegar a “metamorfose”
(Ver esse poema republicado no livro Melhores Poemas, anteriormente
citado, p. 100).
Esse jogo linguístico é encontradiço também em espanhol, segundo nos informa Marta G. de Torres Agüero, na tradução de La stylistique,
de Pierre Guiraud (Buenos Aires: Editorial Nova, 1956, p. 25): Cabizbundo
y meditabajo (por “Cabizbajo y meditabundo”).
Outro fenômeno de troca de sons tem o nome de heterofemia ou
heterofasia, que consiste no uso de uma palavra por outra parecida: “mexa
a porca” por “fecha a porta”, ou “troca o tanque” por “tranque a toca”.
Ainda que seja sempre interessante o efeito desse processo lúdico
de troca de sons, é mais inteligente e surpreendente o seu uso quando a
versão hipertética mantém um sentido próprio, diferente do da frase original, como ocorria nas invenções do reverendo Spooner, merecidamente
imortalizado em dicionários de língua inglesa.