Março, 2025 - Edição 305
Ainda estamos aqui

Ainda estou aqui está em Hollywood, mas não está. O filme brasileiro concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro, mas está longe de ser
hollywoodiano...
O filme de Walter Moreira Salles Júnior, o Waltinho, como é chamado
pelos brasileiros admiradores de seu trabalho de cineasta engajado, não tem
peripécias. Não tem reviravoltas de tirar o fôlego dos espectadores. Não tem
truques ou achados “inteligentes” para surpreender. O que tem então para
prender a atenção do público do começo ao fim nas mais de duas horas de
duração? Tem o olho e o olhar de Fernanda Torres, a Fernandinha (assim
chamada pelos amigos para diferenciá-la da mãe Fernanda Montenegro, a
Fernandona, cuja aparição no filme também merece o Oscar). O olho de
Fernandinha é a câmera do filme. Olha e vê com expressividade rara. Atenta
aos mínimos movimentos, faz o espectador sentir o que ela sente. O olhar
dela fala e passa verdade e emoção. Como disse Aristóteles, só convence
quem está tomado de emoção.
Na primeira parte do filme, o Rio de Janeiro, sobretudo o calmo
Leblon, era só felicidade: o mar onde Eunice nadava, a praia, o sol, a alegria
de viver. E a casa. A casa era mais que uma casa, era um lar feliz. Tinha pai,
mãe, cinco filhos, cachorro, amigos, comida boa na mesa e a desordem do
amor, pois ali vivia uma família amorosa (sem estereótipos – essa uma das
qualidades do filme: não há pastiche nem maniqueísmo). E tinha muito riso
também.
Mas um dia a casa iria cair. O olho Fernandinha/Eunice anteviu. Viu
os caminhões lotados de soldados armados passando pela avenida beira-mar
quando a família se divertia na praia. E, com preocupação, vimos com ela.
Depois, numa segunda parte, o tempo fechou. Cerraram as cortinas,
levaram o pai, Rubens Paiva, e a família, que sorria unida, chorou unida. A
casa, invadida pelo Estado opressor, perdeu o pai, a liberdade, a privacidade
e a alegria. Agora Eunice era mãe e pai, e mulher vigiada. Eunice continua a
procurar o marido. Mas o marido amado não havia mais. Eunice perdeu tudo,
mas seguiu em frente. Virou mãe-coragem. Conheceu a dor, a prisão, a humilhação. Fortalecida, porém, pelo amor do marido ausente/presente e pelo
amor dos filhos, abraçou-os, colocou-os debaixo das asas e “voou” para São
Paulo. Diferentemente de Penélope, não esperou o amado sentada, tecendo.
A primeira cena na cidade de São Paulo,
25 anos depois,
é significativamente na água.
Não mais o mar
imenso, azul,
aberto, ensolarado, mas uma
piscina fechada em que uma
mulher nada: é
filha de Eunice.
Onde está
Eunice, a nadadora da manhã? O que fez nesse quarto de século? Fez muito.
Estudou Direito, engajou-se em causas sociais em defesa dos perseguidos e
espoliados, a exemplo da luta pelas terras indígenas. Eunice torna-se gigante: não tem medo de altura nem de ditadura. O olho de Eunice vê longe, do
alto, e nunca conheceu o medo ou a covardia.
Mais 15 anos se passaram. Eunice não sabe mais quem é. Mas os
filhos e nós espectadores sabemos quem ela é...
Waltinho Moreira Salles poderia ter feito um filme espetaculoso, ou
raivoso, mas preferiu a sobriedade. O único militar que aparece é o general
Emílio Garrastazu Médici, num cartaz nos porões da prisão do Exército. (A
sutileza vale por mil imagens). Infeliz lembrança dos “anos de chumbo”
de meados de 1970. Os sombrios porões da ditadura são mostrados pelos
corredores sendo lavados, para exorcizar as marcas de sangue, e pelos gritos
inúteis dos torturados ecoando ao fundo, como as almas penadas do inferno de Dante. Nenhuma cena a mais. Os homens do regime, tristes figuras,
são representantes do que Hannah Arendt chamou “a banalidade do mal”.
Homens imbecilizados e alienados cumpridores de ordens de ridículos tiranos, que perderam a humanidade, se é que a tiveram um dia...
Waltinho fez um filme emocionante e delicado. Quis tão somente
contar uma história, que preferiríamos fosse ficção, mas não é. Pois é a
história dolorosamente verdadeira de Rubens Beyrodt Paiva, brasileiro,
ex-deputado federal pelo PTB, engenheiro civil, e sua mulher Maria Lucrécia
Eunice Facciola Paiva, contada pelos olhos da Fernandinha/Eunice que,
como Antígona, heroína da tragédia de Sófocles, queria apenas enterrar seu
ente querido.
Eunice não está mais entre nós. Mas está – e sempre estará – aqui,
no coração de cada brasileiro que ama a democracia e luta pela liberdade e
que, como Joana D’Arc, sabe que o verdadeiro túmulo dos heróis é o coração
dos vivos.