Março, 2025 - Edição 305
Abre-te, Sésamo!
 
								
								Num tempo em que a boa literatura concorre com as novas formas
                                    de comunicação, eu continuo um fervoroso adepto da leitura. Um bom
                                    livro nos consola, dá prazer, apela aos nossos sentidos e alimenta o nosso
                                    intelecto. É um valioso recurso para aliviar as nossas angústias existenciais.
                                    É impossível fazer a apologia da boa leitura sem mencionar Marcel Proust,
                                    autor da obra clássica Em Busca do Tempo Perdido. O seu prazer pela leitura
                                    aparece anos antes, no prefácio intitulado “Sobre a leitura”, na tradução para
                                    o francês de Sésamo e Lírios, de John Ruskin. Na obra, é feita a analogia do
                                    valor da leitura com a expressão “Abre-te, Sésamo!”, palavras mágicas de Ali
                                    Babá e os Quarenta Ladrões para abrir a caverna dos tesouros, numa das
                                    histórias das As Mil e uma Noites. A leitura seria o “Abre-te, Sésamo!” com o
                                    qual o leitor poderia penetrar no mundo maravilhoso dos livros. Para Ruskin,
                                    o livro oferece ao leitor a melhor versão de quem o escreveu.
                                    
                                    A leitura instiga a imaginação e faz com que o leitor viva em pensamentos as vidas que jamais viverá na realidade, expandindo o texto escrito
                                    pelo autor e dando-lhe os destinos mais inesperados. Em Dom Casmurro,
                                    de Machado de Assis, a traição de Capitu pode ou não ter existido. E se existiu, pode assumir as formas que a imaginação do leitor deseja. Eu recordo
                                    os meus primeiros mergulhos literários, quando minha irmã lia para mim
                                    Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato e as Fábulas, de Esopo. Depois,
                                    tornei-me fã das enciclopédias – eu amava O Mirador! Com seus verbetes,
                                    alguns ilustrados, eu despertei para o sexo, procurando as figuras nuas femininas de Debret. Descobri, então, a literatura de Érico Veríssimo – eu adorei
                                    Olhai os Lírios do Campo! – e torci para que Eugênio optasse pela doçura de
                                    Olívia e não pela futilidade de Eunice. Li também livros de aventuras, como
                                    A Ilha do Tesouro e O Médico e o Monstro, de Stevenson.
                                    
                                    Com o passar dos anos e o estímulo dos meus professores, tomei
                                    gosto pelas obras clássicas, que não são chamadas assim por acaso – elas
                                    têm algo de atemporal e de universal. Há que se ler Shakespeare, Homero,
                                    Dante, Cervantes, Balzac, Dostoiévski, Tolstói, Proust, Joyce ou Kafka, se
                                    quisermos saber como foi a passagem do homem pela Terra. A leitura não
                                    se presta à superficialidade. Ela exige concentração e reflexão, para que a
                                    mensagem enviada pelo autor possa chegar ao leitor. Num bom livro, há a
                                    sensação de que o “fogo de Prometeu” vai direto ao coração. Eliot afirmava
                                    que o escritor não escreve sozinho, mas traz a marca dos escritores que
                                    o antecederam. Depois de ler Kafka, Borges conta que passou a entender
                                    muitas de suas leituras anteriores. Quando li A Pele do Onagro, de Balzac,
                                    impressionou-me a mistura de realidade e fantasia. Precisei ler Borges, anos
                                    depois, para entender esta obra. Meu conselho ao jovem leitor é começar
                                    pela poesia ou por histórias curtas. O conto Uma Alma Simples, de Flaubert,
                                    é um exemplo. O leitor amará Felicité e o seu papagaio Lulu. Há uma grande
                                    literatura feita de textos curtos. Borges escreveu maravilhas em poucas páginas – o Aleph, A Biblioteca de Babel, O Sul ou O Livro de Areia. Recomendo O
                                    Capote, de Gogol; O Coração Revelador, de Poe; A Dama do Cachorrinho, de
                                    Tchekhov; O Cavalheiro de São Francisco, de Bunin; A Invenção de Morel, de
                                    Bioy Casares; e dentre os contos mais longos Eles, de Kipling, autor do belo
                                    poema Se.
                                    
                                    Depois, o leitor poderá lançar-se nos mares mais profundos do
                                    romance. Tolstói, nas páginas iniciais de Anna Karenina, observa que as
                                    famílias se assemelham na felicidade, mas cada uma tem a sua forma de
                                    lidar com o sofrimento. São dele Guerra e Paz e A Morte de Ivan Ilitch – este
                                    último um romance curto, mas que nos faz refletir sobre o sentido das nossas
                                    vidas. Para saber sobre os tipos humanos, não há nada como a dramaturgia
                                    de Shakespeare. Hamlet é a peça teatral mais exibida de todos os tempos. Do
                                    bardo inglês, há Rei Lear, Macbeth, Romeu e Julieta, Othelo e outras maravilhas. Harold Bloom afirmava que a obra de Shakespeare representa quase a
                                    invenção do humano, por ser o resultado de um processo de autoconhecimento através da literatura, fruto de um diálogo do autor consigo mesmo e
                                    não com divindades. Não há quem supere Homero para nos ensinar – com
                                    A Ilíada – como viviam e pensavam os gregos no mundo antigo; ou sobre as
                                    grandes epopeias dos mares – com a Odisseia – inspiração para clássicos que
                                    viriam depois, como A Eneida, de Virgílio, ou Os Lusíadas, de Camões. Para
                                    aprender sobre a força da natureza, uma boa leitura é Moby Dick, de Herman
                                    Melville; e para lembrar do absurdo ou da ausência de sentido de nossas
                                    vidas, recomendo a leitura de O Estrangeiro, de Camus.
                                    
                                    Sobre a grande peste do século XIV, nada supera O Decameron, de
                                    Boccaccio, que reúne histórias bem-humoradas, contadas por sete moças e
                                    três rapazes da sociedade florentina, que, para fugir da doença, confinam-
                                    -se numa confortável casa no campo. Quem quiser saber como pensava o
                                    homem europeu da Idade Média, leia a Divina Comédia, do “sumo poeta”
                                    Dante Alighieri. É através deste longo e belo poema, escrito na “linguagem
                                    falada pelas mulheres nas ruas”, que o idioma italiano se consolida. O que
                                    dizer do Dom Quixote, de Cervantes, que – nas palavras de Borges – não era
                                    um personagem da obra e sim um amigo de todas as horas? Cervantes criauma paródia dos romances de cavalaria, para mim a obra mais representativa da literatura de língua espanhola (secundada, penso, por Cem Anos de
                                    Solidão, de Garcia Marques). O leitor interessado nas angústias do homem
                                    das primeiras décadas do século XX deve ler A Metamorfose, de Kafka. É um
                                    texto curto e que prende a atenção do leitor – não é comum despertar, numa
                                    certa manhã, transformado numa barata gigante. Outra leitura – mais difícil
                                    – seria No Caminho de Swann, o primeiro dos sete volumes de Em Busca do
                                    Tempo Perdido, de Proust, uma beleza de construção literária. Quem sabe, o
                                    leitor seguirá adiante na leitura dos volumes restantes.
								
								Os mais corajosos podem tentar o quase indecifrável Ulisses, de James
Joyce, que descreve as vinte e quatro horas do dia de um homem comum,
inspirado na sequência dos eventos descritos na Odisseia, de Homero. Eu
não perderia a chance de ler A Montanha Mágica, de Thomas Mann. O personagem central Castorp conduz o leitor pelos meandros de um asilo para
tuberculosos em Davos, na Suíça, onde aprenderá sobre a terrível doença
e, mais importante, sobre o pensamento do homem europeu do período
que antecede a Primeira Guerra. Bandeira esteve internado num sanatório
suíço para tratar a sua tuberculose. Há outros romances que me tocaram
profundamente, como As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, com os lugares
de nomes femininos e os relatos de Marco Polo ao imperador Kublai Khan;
ou O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse – lembro que eu, adolescente, identifiquei-me com o personagem do cinquentão atormentado. Há também
dignidade de O Velho e o Mar, de Hemingway; ou a dureza de O Jogador, de
Dostoiévski, com o qual dei-me conta do poder destrutivo da compulsão
de jogar. Desfrutei o realismo de A Comédia Humana, de Balzac, um fiel
retrato da sociedade francesa de sua época, que li uma parte, mas não toda;
as aventuras de Oliver Twist e as histórias quase autobiográficas de David
Cooperfield, de Dickens; e a obstinação de Jean Valjean em proteger Fantine
e a pequena Cosette, e a perseguição incansável do inspetor Javert, em Os
Miseráveis, de Victor Hugo. Dos autores mais recentes, não posso esquecer
de recomendar ao leitor a linguagem cuidadosa de Conversa na Catedral, de
Vargas Llosa; e as surpresas de O Jogo da Amarelinha, de Cortázar.
Para nós, leitores da língua portuguesa, há que desfrutar a riqueza
poética dos heterônimos de Pessoa, em Tabacaria ou Poema em Linha Reta,
de Álvaro de Campos; e Num Meio-Dia de Fim de Primavera, de Alberto
Caeiro; ou Autopsicografia e Mar Português, de Pessoa ele mesmo, em que o
poeta diz que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Adolescente, eu
li Os Maias, de Eça de Queiroz; depois, O Crime do Padre Amaro. Eça apresentou-me ao pecado. Há que lembrar do Memorial do Convento e do Ensaio
sobre a Cegueira, de Saramago e tantas obras maravilhosas. Dos brasileiros,
há Machado, de quem já citei Dom Casmurro e destaco a ironia fina, a crítica
social e a bem-humorada antecipação da literatura fantástica em Memórias
Póstumas de Brás Cubas. Há o monumental Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa, com mais de seiscentas páginas de uma narrativa cheia
de neologismos e sem descanso, regional só na aparência do sertão árido
de Minas, dos enfrentamentos entre bandos de jagunços, num Brasil quase
sem lei, mas que ao final percebemos ser o embate entre deus e o diabo,
tão universal como o Fausto, de Goethe. Há também as obras de Graciliano,
Euclides da Cunha, Clarice, Jorge Amado, Érico, Bandeira, Drummond, João
Cabral e tantos outros.
Numa entrevista com Evanildo Bechara, ele lembrou que, mais
importante do que memorizar regras gramaticais, a leitura é a melhor
maneira de dominar um idioma. No curso secundário, uma professora
orientou-me a adquirir uma edição da Divina Comédia que contivesse os
versos originais no italiano e ao lado a sua tradução para o português. O seu
argumento era que a poesia é antes de tudo a “música” contida nas palavras
e que isto só é percebido ao ler em voz alta os versos no original – o sentido
vem depois. Se eu pudesse aconselhar o leitor, eu diria que não perca tempo
com leituras que não o agradem. Fique com os textos que capturem a sua
curiosidade. Ao ler o que dá prazer, os encantamentos da boa literatura terão
mais chance de penetrar o coração. Uma vez refém do livro, o leitor pode
permitir-se voos mais elevados. Atenção: um bom livro pode causar mal-
-estar, quando se trata de temas mais difíceis. Ao ler Crime e Castigo ou Os
Irmãos Karamazov, de Dostoiévski; ou Lolita, de Nabokov, o leitor entenderá
o sentido de minhas palavras.
O milagre da literatura se dá quando o texto chega ao leitor e triunfa.
Ele compreenderá, então, não mais o texto, mas o sentimento nele depositado pelo autor. Escrever um livro é algo muito sério. Proust impôs a si
próprio um exílio em seu quarto de dormir, para criar a sua obra-prima, Em
Busca do Tempo Perdido. Para que nada lhe tirasse a concentração, ele tratou
de atenuar o ruído das ruas, mandando aplicar um revestimento de cortiça
nas janelas do seu quarto. Isto se justifica na premissa de que o autor dá ao
texto o seu melhor. Talvez esteja aí a essência da leitura, a possibilidade de
que, através do livro, possamos desfrutar do que há de mais profundo na
experiência humana. Quando li Noites Brancas, de Dostoiévski, eu entendi o
que é sonhar através da leitura. Imaginei ser capaz de conquistar o coração
da jovem Nastienka, no indescritível branco das noites de fim de junho, na
bela São Petersburgo, mesmo ante a impossibilidade de ser por ela correspondido.