Janeiro, 2025 - Edição 304
Língua é forma e não substância
Resumo
Procura-se, neste artigo, explicar didaticamente o significado da frase atribuída a Saussure: “Língua é forma e não substância.” Para tanto, parte-se da comparação da língua com uma dessas massas de modelar que se vendem nas papelarias. Por se tratar da explicação de uma frase, não há aqui indicações bibliográficas, nem mesmo da obra de Saussure, uma vez que é bem possível que a frase não seja de Saussure, mas dos seus discípulos, Bally e Sechehaye.
Explicação
Saussure ensina que o signo
linguístico é constituído de significante e significado. O significante é
a expressão do signo, o conjunto de
sons que o constituem, como a forma
/’kaza/ da palavra casa. Significado é
o conteúdo semântico do signo, isto
é, a ideia que o falante tem da palavra casa.
Tanto no conteúdo quanto na
expressão se podem distinguir dois
planos: o da forma e o da substância.
Vamos imaginar que um professor entregue a cada um de seus
alunos uma dessas massas de modelar que se encontram facilmente no
comércio. Cada aluno fica encarregado de fazer a escultura que desejar com a massinha que recebeu. No
final, cada um dos alunos apresentará
uma escultura diferente e nem todos
usarão toda a massinha que receberam.
Podemos dizer que todos receberam a mesma substância – a massinha – mas a forma que cada aluno deu
a sua massinha foi diferente, ainda
que algumas formas se parecessem.
Imaginemos todos os sons linguisticamente possíveis, existentes no
mundo (há sons que não têm interesse linguístico, produzidos pela boca,
como, por exemplo, o espirro, o soluço, a tosse).
Todos esses sons linguisticamente pertinentes – a massinha
– são a substância da expressão a que cada aluno (ou língua) deu
uma forma diferente.
A substância da expressão é o conjunto de sons linguisticamente pertinentes (“a massinha”) que os órgãos da fala podem
produzir. A forma da expressão é o conjunto de sons (a “escultura
da massinha”) que cada língua escolhe para formar os vocábulos.
Em outras palavras, a forma da expressão é o conjunto de fonemas
próprios de cada língua, isto é, cada língua “esculpe” uma forma
diferente da substância da expressão.
Consideremos a substância como a realidade que nos circunda e que vislumbramos, sentimos ou compreendemos. Essa
realidade é a massinha do conteúdo, a substância, o conjunto de
coisas, seres, sentimentos, conhecimentos. Cada língua “esculpe”
essa massinha do conteúdo de maneira diferente, isto é, cada língua dá uma forma diferente à substância do conteúdo.
Quando disse que “Língua é forma e não substância”,
Saussure quis dizer que é a forma que caracteriza a língua. Quando
traduzimos uma língua, temos de ver a forma que essa língua dá ao
conteúdo que conhecemos.
Casar, por exemplo, em português é contrair núpcias, unir
pelo casamento um homem e uma mulher. Em latim, embora
pareça estranho, o verbo casar (nubere) se traduz diferentemente
se é o homem que se casa com a mulher ou se é a mulher que se
casa com o homem. Para um falante do português, quando um
homem e uma mulher se casam, tanto faz dizer, por exemplo, que
Maria se casou com Pedro quanto Pedro se casou com Maria. Mas,
em latim, “Maria se casou com Pedro” se traduz como Maria nupsit
Petro (ablativo). Mas “Pedro se casou com Maria” se traduz como
Petrus duxit uxorem Mariam (acusativo). Isto é, se é a mulher que
se casa, o verbo é nubere; se é o homem que se casa, a expressão é
duxit uxorem, embora o ato seja o mesmo e atinja os dois, indistintamente, ao mesmo tempo.
O conteúdo hora, período de
tempo de 60 minutos, é um conteúdo universal que todos conhecemos.
Hora, em francês, é heure, mas heure
tem uma forma diferente em francês. Pode significar “madrugada”: de
bonne heure; “daqui a pouco”: tout
à l’heure; “o tempo todo”: à toute
heure...
Em alemão, hora é Uhr (que
também significa “relógio”). Se dizemos “ela é cheia de nove horas”, não
podemos dizer em alemão “Sie ist
voll von neun Uhr”, o que não teria
sentido tampouco em inglês: “She is
full of nine o’clock.” Cada língua dá
forma diferente à substância do conteúdo, por isso a forma é que importa
na língua, do contrário bastaria um
dicionário de inglês-português ou de
alemão-português para que pudéssemos traduzir qualquer obra em inglês
ou em alemão mesmo sem sabermos
nada dessas línguas. O que importa é
a forma como essas línguas parcelam
a “massinha” do conteúdo.
Em resumo: a linguagem (capacidade que o ser humano tem de
exprimir-se por meio de sons vocais)
tem dois aspectos: o aspecto social
chamado língua (langue), que constitui o acervo linguístico comum de
uma comunidade, e o aspecto individual chamado fala (parole), que é a
atualização da língua, o modo como
cada falante se utiliza da língua. A
fala, união de um som a um sentido,
é substância; enquanto a língua, que
é atualizada pela fala, e é o conjunto dos significantes e dos significados, é a forma. A forma é a própria estrutura da língua. A forma
pode ocorrer sem substância (caso de algumas preposições e conjunções que são signos vazios), mas não pode ocorrer substância
sem forma.