Novembro, 2024 - Edição 303

Rosalía de Castro e Nélida Piñon: Almas Galegas

A escritora Nélida Piñon (1934-2022), que eu muito admirava pelo brilho e inteligência, logo que me conheceu disse: “Naveira...
a que navega...
esse nome é galego.” Nélida tinha origem galega. Alma galega. Inspirada na história de vida de seus pais, que vieram da Galícia para o Rio de Janeiro, escreveu o fantástico e mágico romance República dos Sonhos (1984). A trama conta a história de Madruga, jovem camponês que deixa a Galícia e se instala numa pensão humilde da Praça Mauá. A vida de Madruga passa por êxitos e fracassos que o fazem questionar seus ideais de liberdade e de felicidade. Mais tarde, a neta Breta busca juntar os fragmentos e reconstituir a história de sua família, que se mistura com a própria história do Brasil, o belo e complexo país tropical que os recebeu. Um livro sobre as heranças europeias, que criaram e modelaram a nossa riqueza cultural.

A Galiza, na região da Galícia, situa-se a noroeste da Espanha, limita-se com o oceano Atlântico, com Portugal e com as regiões de Leão e das Astúrias. Um território montanhoso, cortado pelos prolongamentos da cadeia asturiana, com cabos projetando-se no oceano, banhado por diversos rios, entre eles o Minho. O contorno da costa é irregular, cheio de enseadas, florestas e magníficos prados. Foi conquistada pelos árabes no início do século VIII, os quais foram expulsos pelos cristãos, passando a formar, com as Astúrias, um só reino. Após a morte de Fernando I, o Grande, em 1605, tornou-se novamente independente. Posteriormente foi incorporada aos reinos de Leão e de Castela. Sofreu a invasão das tropas napoleônicas. Colocou-se ao lado das forças nacionalistas no decorrer da Guerra Civil Espanhola.

Rosalía de Castro, a fundadora da literatura galega moderna, nasceu em Santiago de Compostela, em 1837, e faleceu em Padrón, na Espanha, em 1885. Era filha de José Martínez Viojo, um sacerdote católico, e de Maria Tereza de la Cruz de Castro e Abadia, uma fidalga. Rosalía não podia viver com nenhum de seus pais nem tomar sobrenome deles, segundo os costumes da época. O fato de ser filha ilegítima de um clérigo marcou-a profundamente. Passou sua infância na casa de uma tia paterna, depois a mãe assumiu sua educação. Em Compostela, recebeu formação musical, artística e literária.

Casou-se com o investigador e jornalista Manuel Murguia. A vida do casal era itinerante, pois ele ocupou vários cargos administrativos na Espanha. Tiveram cinco filhos: Áurea, os gêmeos Gala e Ovídio, Amara e Adriano. Publicou obras em galego e castelhano: Cantares Galegos, leves glosas de canções populares, onde manifesta a sua intensa nostalgia da terra galega; Folhas Novas, obra de intensidade lírica em que exprime o seu amor pela natureza e a coletânea de poemas En las Orillas del Sar, onde o seu pessimismo se acentua. Os temas predominantes são: a realidade da dor, a implacável passagem do tempo, um obsessivo sentimento da morte, uma visão da Galiza rural e denúncia das injustiças sociais, pobreza e miséria, sofridas pelo povo. O seu espírito poético foi tocado pelo afastamento de sua terra, pelas desgraças familiares, perdas dos filhos, doenças físicas e morais. Ela afunda em sentimentos dolorosos, na saudade e chega à fronteira de seu próprio ser. Por outro lado, Rosalía é uma inovadora estilística, utilizando ritmos novos, flexíveis e harmoniosos, como nestes seus versos:
Enquanto o gelo as recobre Com fios brilhantes de prata As plantas ficam transidas, Transidas como minh’alma. Esses gelos para as plantas São promessa de flores precoces, Para mim silenciosos fiandeiros Que vão-me tecendo a mortalha.

Escrevi este poema em homenagem a Rosalía de Castro:

Rosalía,
Vestida de negro,
Caminha pelo vale,
Sombra entre os pinos angulosos
E os gritos das aves
Nas avelaneiras.
Coração carregado de terrores secretos,
Rosto abatido,
Mãos trêmulas como ervas,
Caminha rumo a Santiago,
No prumo da perfeição.
Passa por bosques,
Ribeiras,
Atravessa a tempestade,
A neblina espessa,
Nuvem ligeira
Que caminha.
Ao longe,
Ouve os sinos da igreja,
Que fazem chorar,
Rezar em soluços,
Lembra-se de Tiago,
O pescador,
O apóstolo
Passado a fio de espada,
A tristeza come-lhe as entranhas.
É preciso chegar a Compostela,
Ao abrigo,
Peregrina que foge de si mesma
E se rebela.
É preciso aplacar a raiva,
Depor a foice
De quem faz justiça com as próprias mãos.
Chove pelo caminho,
Amarfanha-se o vestido,
O negror do linho penetra a pele:
Onde a cantiga galega
Ao pé das fontes e arroios?
Onde os ramos de açucenas nos muros?
Onde os rosais floridos?
Tudo seca,
Tudo morre.
Rosalía,
Estrela negra,
Embrenhou-se
Na Via Láctea.

Querida e saudosa Nélida, penso que é mesmo bom um nome galego para navegar pela poesia.

Por Raquel Naveira, membro da Academia Matogrossense de Letras.