Novembro, 2024 - Edição 303
Desgostos de agosto
Agosto é mês de desgosto, diz o bordão. Logo se cita o suicídio de
Getúlio. Mas outro caso de agosto teve profundas repercussões na História
do Brasil: a renúncia de Jânio Quadros. Carlos Castelo Branco, que gostava de
afirmar que era apenas um repórter, mas o consolidador do jornalismo de análise em nosso país, publicou um pequeno livro com seu depoimento sobre a
renúncia do presidente Jânio Quadros. Muitas vezes disse-me que tinha escrito
estas páginas e que elas somente deveriam ser publicadas depois de sua morte.
É o relato preciso de um repórter que anotou e analisou os fatos com uma
precisão de linguagem e uma honestidade exemplares, características de sua
personalidade. Mas não é fácil, para o leitor de hoje, entender aqueles tempos.
O último período de Vargas foi todo ele marcado por um clima de
esperto suspense sem que ninguém soubesse como era o seu processo de decisão e quais os seus objetivos. O governo de Jânio, no sentimento dos que com
ele trabalhavam, era de medos e imprevistos. O presidente era uma alma que
não se deixava revelar e nele nunca se distinguia bem entre o grande homem
público e o teatro. Castelo pinta com precisão esse cenário.
Castelinho não diz o motivo da renúncia. Ele ficou encurralado num
leque de explicações, nenhuma delas racional. Não quis listá-las. Eu acredito
que ninguém pode explicá-la. Nem Jânio Quadros, o autor, sabia. O presidente
costumava viver pessoalmente um personagem de tensão a inspirar temor. Se
tinha afetos maiores, eles jamais se explicitavam, e nem suas ideias, nem suas
paixões. Castelo revela que, quando voltou da Europa, após deixar o governo,
o ex-presidente entregou a ele, a José Aparecido e Oscar Pedroso Horta — seu
ministro da Justiça — a tarefa de escreverem a explicação da renúncia, bem
como a de escolherem o melhor caminho de levá-la ao público, já com os olhos
voltados para o futuro político.
Fui vice-líder do governo Jânio Quadros. Com o presidente, através de
Aparecido, Castelo, Quintanilha Ribeiro, tinha uma convivência quase protocolar. Mas dele sempre recebi provas de consideração. Um dia, às sete horas da
manhã, chamou-me a seu gabinete e foi incisivo:
— Preciso do Senhor, deputado Sarney. Em Cuba, fizeram uma revolução. No governo só tem gente jovem. Quero mostrar-lhes que o embaixador do
Brasil será um jovem de trinta anos!
Fiquei perplexo. Eu começava minha carreira política e minha única
aspiração era ser um bom parlamentar. Fui ao Chanceler Afonso Arinos, meu
velho e querido e sempre saudoso amigo, e pedi-lhe proteção: “Ajude-me a
demover esse homem dessa insensatez. Eu não tenho, acrescentei com humor,
desejo de repercutir na ONU…” A coisa passou.
No livro de Castelo há uma omissão. A noite da véspera da renúncia,
que ele descreve, eu acompanhei de perto. Estava com ele na casa do Horta,
que me chamou para uma conversa separada e pediu-me para ir na manhã
seguinte à Câmara dos Deputados fazer um levantamento de todas as emendas constitucionais em tramitação, pois desejava ir ao Congresso e responder
às denúncias de Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, tendo como
base que todas as reformas que solicitava estavam no Congresso, não haviam
sido por ele inventadas e, assim, não eram pistas de um “golpe de estado”.
Eram umas três horas da manhã. Pouco depois saíamos. Quando eu e Castelo
descemos no elevador, perguntei-lhe, sentindo que a crise era profunda: — “O
que vai acontecer?” Ele respondeu-me: — “O Horta caiu, Aparecido ganhou.”
Às quatro horas da tarde, o presente já era passado: Jânio estava em
Cumbica, e todos nós vivíamos uma frustração que doeu por muito tempo.
Algum tempo depois cobrei do Castelo sua afirmação naquela fria
madrugada de Brasília, e ele completou: “O Horta caiu mesmo. Somente não
se sabia que ele, para não sair só, levou o Jânio.” Em mim, ficou a impressão de
que aí estava a motivação de o ministro da Justiça ter sido tão intransigente na
entrega imediata da carta de renúncia ao Congresso Nacional.
Velhos tempos, que têm o sabor das coisas velhas, vividas e que nunca
se explicam. De Getúlio se conhece o caminho do suicídio. Ele sabia que a bala
com que ia matar a República do Galeão passava pelo seu coração. Era um
gesto político. O da renúncia de Jânio nunca ninguém saberá, nem ele mesmo
sabia. Era o segredo de uma madrugada de angústia com a lembrança de De
Gaulle, renunciando e voltando.
Eu e a UDN, depois da renúncia, contraímos uma úlcera de estômago,
que jamais nos largou.