Novembro, 2024 - Edição 303

Da loba ao lupanar

Diz a lenda da fundação de Roma que Amúlio depusera o irmão Númitor do trono de Alba Longa e fizera assassinar todos os seus filhos homens; a filha Reia Sílvia fora obrigada a tornar-se vestal, mas, quebrando o voto de castidade, deu à luz os gêmeos Rômulo e Remo, que Amúlio mandou afogar, lançando-os ao Tibre, numa cesta de palha. Mas a cesta não afundou, e a correnteza do rio levou-a à margem, até uma figueira, de onde uma loba os teria levado para uma gruta e amamentado, até que fossem encontrados pelo pastor Fáustulo que lhes deu guarida (Veja-se GILBERT, John. Mitos e Lendas da Roma Antiga. São Pulo: Melhoramentos/Edusp, 1976, p. 62). A mulher de Fáustulo teria sido uma cortesã de nome Aca Laurência ou Laurentina. O termo latino que designava as cortesãs era lupa. Segundo Ernout e Meillet, no Dicitonnaire Étymologique de la Langue Latine (Paris: Klincksieck, 1967, s. v. lupa-ae), a palavra lupa designava a cortesã antes mesmo de designar a fêmea do lobo. Neste último sentido, os latinos usavam a expressão lupus femina. Messalina, ainda segundo aqueles dicionaristas, adotava o nome grego de Lysisca, isto é, loba, nas suas devassidões.

O termo Luperca-ae, do latim, designa a deusa loba que teria amamentado Rômulo e Remo na gruta que levou o nome de Lupercal. O nome plural Luperci-orum designa o colégio de sacerdotes encarregados de celebrar o culto de Luperca, nas lupercálias ou lupercais. Villeneuve, na sua Crônica Escandalosa dos Doze Césares, descreve as lupercálias, com base em Plutarco, como sendo um desfile realizado em fevereiro por jovens pertencentes às primeiras famílias de Roma, que saíam da gruta onde a loba teria amamentado os gêmeos, e percorriam as ruas de Roma inteiramente nus, exceto por um cinto de pele de cabra, flagelando os transeuntes. “As donzelas iam levadas adiante dos seus golpes, porque a correia lupercal era reputada como tendo a virtude de expulsar a esterilidade e de provocar partos felizes” (VILLENEUVE, Bagneux de. Crônica Escandalosa dos Doze Césares. São Paulo: Victor, [19... ], p. 126-7). No verbete Lupercálias, Tassilo Orpheu Spalding, no Dicionário de Mitologia Greco-latina, diz: “No dia das Lupercais [os lupercos] percorriam as ruas de Roma com um chicote na mão; estavam convencidos [de] que as mulheres que fossem atingidas por uma chicotada teriam um filho antes do fim do ano” (SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de Mitologia Greco-latina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965). Teria sido essa pele de cabra, de que nos fala Villeneuve e que envolvia a cintura dos jovens lupercos, a razão para pressupor que o termo lupercus se tenha originado da justaposição da palavra lupus (lobo) com a palavra hircus (bode).

Roma, de acordo com Plutarco, teria sido fundada em 21 de abril de 753 a. C. Antes dessa data, ocupavam a cidade os etruscos, originários da Ásia Menor, que, expulsos pelos dórios, teriam chegado à península itálica possivelmente no século X, antes de Cristo. À época da fundação de Roma, em 753 a. C., a península itálica era habitada principalmente por quatro povos de origem e civilização diversas: os itálicos, os etruscos, os cartagineses e os gregos. Os itálicos foram deslocados para o interior por causa da expansão dos etruscos que, aliados dos cartagineses, conseguiram estender seu domínio por quase toda a península. Mas os galos que invadiram a região do Pó (a Gália Cisalpina) enfraqueceram os etruscos e prepararam o terreno para as conquistas dos latinos.

A ascensão do império romano merecia que a história de sua fundação correspondesse à sua grandeza: por razões éticas, a loba-prostituta foi substituída pela loba-animal, e a cortesã Laurentina foi reabilitada por uma lenda que a tornava amante de Hércules. Rômulo e Remo passaram, então, a filhos de Marte com a vestal Reia Sílvia. Mas o orgulho dos novos sacerdotes do império romano não conseguiu mudar a tradição da língua. A lupus-femina passou à lupa que amamentou os gêmeos, mas restou o termo lupanar, designativo de prostíbulo, para mostrar que foi a lupa-mulher, a lupa-prostituta, e não a fêmea do lobo, a base mitológico-histórica de uma grande civilização.

Por José Augusto Carvalho, mestre em Linguística pela Unicamp e doutor em Letras pela USP, é autor de duas gramáticas (uma para cursos de pré-vestibular, outra para o curso superior) e de vários livros de estudos de língua portuguesa e de linguística, como Pequeno Manual de Pontuação em Português (2013) e Estudos sobre o Pronome (2016), ambos da Editora Thesaurus, de Brasília..