Novembro, 2024 - Edição 303

Camões viveu e morreu pobre e miseravelmente

Ao contrário de todas as outras epopeias, Os Lusíadas oferecem-nos uma visão crítica de Portugal e dos portugueses. Tudo faz supor que as comemorações, em Portugal, do V Centenário do Nascimento de Camões se revistam de uma dimensão cultural e cívica, a fim de recuperar o verdadeiro perfil do homem e o conteúdo integral da obra que, por motivos políticos, religiosos e literários, tem sido intencionalmente desfigurada.

À margem do programa oficial – que será conhecido no princípio de Novembro – destaca-se a reedição do livro Luís de Camões: Fabuloso e Verdadeiro, da autoria de Aquilino Ribeiro. Esta obra, que surgiu em 1950, provocou uma das polêmicas literárias mais ruidosas que ocorreram em Portugal na segunda metade do século XX. Capítulo a capítulo, Aquilino foi “varrendo teias de aranha”, “removendo entulhos”, “demolindo túmulos”. Em suma: todo um “romance mal urdido, falso no que respeita à pessoa e destituído de senso quanto à verdade local”. Denunciou todas as situações elaboradas para conseguir efeitos de exaltação patriótica e de arrebatamento sentimental. Para evitar equívocos, Aquilino declarou que não se alicerçava em materiais inéditos. Limitara-se a “ler com olhos atentos” o que escreveram os primeiros biógrafos e, nos séculos XIX e XX, Teófilo Braga, José Maria Rodrigues, Wilhelm Stork (traduzido por Carolina Michaëlis), António de Campos Júnior, Hernâni Cidade e José Régio. A principal fonte de Aquilino residiu nas “três cartas particulares que restam do poeta”. “Não foi empresa fácil” – confessou – “são verdadeiras e intrincadas charadas, naquela forma criptográfica de dizer coisas qui ferait rougir un singe, e porque esse hermetismo era de moda nas letras”.

Desmontou a lendária origem aristocrática da família para nos restituir o “espadachim de vielas de má nota nas horas vagas, com entrada no paço, tu cá, tu lá com os grandes, amante feliz de umas açafatas, enamorado de outras, estro sempre pronto para glosar um mote, numa palavra um gentil homem pobre, mas invejável”. Examinou, em pormenor, as primeiras edições d’Os Lusíadas. Camões escolheu António Gonçalves, com oficina na Costa do Castelo, para, em 1572, imprimir Os Lusíadas. Rompeu com todas as tradições da época: prescindiu de qualquer prefácio e não fez qualquer dedicatória. Apenas se lê na primeira página: “Com privilégio real. Impresso em Lisboa com licença da Sancta Inquisição e do Ordinário.”

Terá havido, em 1572, uma ou duas edições? Logo nas primeiras estrofes, houve alterações relevantes: erros de impressão, gralhas ou modificações que o poeta quis incluir no texto? Trinta anos após a morte de Aquilino, uma pesquisa efetuada por David Jackson – professor da Universidade de Yale – detetou mais de duas mil diferenças, em face da consulta de 34 exemplares d’Os Lusíadas de 1572 existentes não só em Portugal e no Brasil, mas noutras bibliotecas públicas e privadas dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Itália, da França, da Alemanha e da Espanha. Numa entrevista que me concedeu, para o Diário de Notícias, David Jackson concluiu que “houve uma única edição em 1572, possivelmente interrompida, devido a correções realizadas pelo próprio punho de Camões”.

Vivendo Aquilino num regime de censura, orientada por Salazar, que cortava ou proibia indiscriminadamente o conteúdo dos livros, dos jornais e das peças de teatro – tal como no tempo da Inquisição –, aproveitou a oportunidade para denunciar a atitude dúplice do censor d’Os Lusíadas, o dominicano Frei Bartolomeu Ferreira. Ficou claro que adotou dois comportamentos por sua iniciativa ou por ordem da Inquisição. Para a primeira edição, no entender de Aquilino, houve conversações e reajustamentos entre o censor e o autor. No despacho que exarou, pode ler-se: “não achei neles (Os Lusíadas) cousa alguma escandalosa, nem contrária à fé e aos bons costumes.”

A propósito das narrativas pagãs, dos versos incendiados de exaltação sexual, nomeadamente no Canto IX, relativo à Ilha dos Amores, Bartolomeu Ferreira escreveu: “como isto é poesia e fingimento, e o autor, como poeta, não pretende mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula na obra. E por isso me parece o livro digno de se imprimir, e o autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas.” Mas, já depois da morte de Camões, para a chamada edição dos Piscos, publicada no domínio espanhol, Aquilino reconheceu “a mão imperiosa e teologal” do mesmo Bartolomeu Ferreira, que “emendou, transverteu, suprimiu” e introduziu ostensiva e arbitrariamente n’Os Lusíadas “versos aleijados e de mau gosto”.

Até Camões – Aquilino faz questão de assinalar – “nunca a língua fora manejada com aquela agilidade e limpidez, aqueles ritmos de avena culta, com flexões novas, pedidas ao latim, que lhe imprimiram elegância, sem perda de vigor e com ganho de harmonia”. Portanto: estamos perante duas línguas portuguesas – antes e depois de Camões.

A obra de Aquilino, agora reeditada pela Bertrand Editora num volume coordenado por Eduardo Boavida, com capa de Álvaro Carrilho e um prefácio da minha autoria, integra, pela primeira vez, um índice onomástico e um índice toponímico, para facilitar a consulta deste livro.

Através de Luís de Camões: Fabuloso e Verdadeiro verificamos a oposição frontal de Aquilino às efabulações que desvirtuaram a imagem do homem e a obra do poeta. Esqueceram que, em 1579, ficou gravado na sepultura: “viveu pobre e miseravelmente e assim morreu.” A leitura d’Os Lusíadas, das líricas, dos sonetos, dos autos e das cartas suscita reflexões e advertências contra as opiniões dominantes. Camões enfrenta o poder e os poderosos. Tem a coragem de esvaziar os mitos, os lugares-comuns e as ideias convencionais que se consolidaram ao longo dos séculos.

Por António Valdemar, jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia de Ciências de Lisboa, sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras.