Setembro, 2024 - Edição 302

Os amores de Latino Coelho

Algum tempo atrás, registrava eu a facilidade com que atualmente se consultam registros – documentos, imagens, arquivos de áudio – nas páginas das organizações provedoras de informação internet a fora. Só que resta ainda muita informação disponível apenas nos registros em que fora originalmente criada. É o caso do material gerado como resultado da atividade jurisdicional, processos judiciais ou outros registros, a exemplo de súmulas de julgamentos. Dedicar-se ao seu estudo requer munir-se de dose extra de paciência e dedicação; por exemplo, deslocando-se até a sede dos arquivos para consulta presencial.

Fazendo isso, consultando arquivos em Lisboa em recente volta à cidade, aproveitei para um passeio pela feira dos alfarrabistas no Chiado, num sábado pela manhã. Entre um dicionário corográfico das freguesias portuguesas e uma biografia de Camilo Castelo Branco adquiri interessante volume intitulado Os Amores de Latino Coelho, de autoria de Brito Camacho, editado em 1924 pela Livraria Editora Guimarães e Cia, de Lisboa.

O volume, em perfeito estado de conservação, trata de tema curioso: cartas de amor redigidas pelo grande publicista português do século XIX José Maria Latino Coelho. Aliás, redigidas pelo engenheiro militar, jornalista, filólogo, historiador, ensaísta e político (deputado, par do reino, ministro), nascido em Lisboa, em 1825, e que faleceu em Sintra, em 1891. Um homem do oitocentos, cronológica e ideologicamente falando. Sua monumental História Política e Militar de Portugal, Desde os Fins do XVIII Século a 1814, publicado entre 1874 e 1891, é um repositório de informações sobre o intrincado período, hoje lido criticamente pelos pesquisadores por conta de alegado favorecimento do autor ao controverso ministro Marquês de Pombal.

Mas de que trata o livro de que dou notícia aqui? Ora, segundo o descrevem os biógrafos, foi Latino Coelho “um cerebral e um tímido”, de quem “debalde” alguém “procuraria rastros das grandes tempestades que em certas almas são os paramos do céu e os vórtices do inferno” (CAMACHO, p. 5). A esse propósito publicara Albino Forjaz Sampaio, na esteira da voz corrente, crônica referindo a aridez amorosa de Latino Coelho. A que o escritor Manuel de Brito Camacho, também ele militar, publicista e político, atalhou, munido de seis cartas amorosas dirigidas por Latino Coelho a uma moça, dona de seus afetos. Cerimoniosas cartas obtidas por Brito Camacho, traduzindo os máximos arroubos a que se permitia o missivista, que “amou, mas amou sempre cerimoniosamente, num namoro cheio de pragmática e atenções de protocolo” (CAMACHO, p. 7). O livro é um belo resgate de traços da personalidade de José Maria Latino Coelho, “desfazendo com provas uma grave, se bem que honesta, injustiça da crítica literária”. O que nos põe a pensar: fazem-se ainda trabalhos de investigação com esse propósito hoje em dia?

Não importa. Surpreendeu-me mais o fato de que o centenário volume, adquirido por módicos oito euros, trata-se do exemplar autografado oferecido por Brito Camacho a Forjaz Sampaio, cuja crônica inspirou ao autor o trabalho investigatório: “Ao Albino Forjaz, com um affectuoso abraço Off. ce o seu velho a. m e admirador Brito Camacho. Lisboa, 924.” Feliz e curiosa coincidência, que garante ao exemplar lugar especial na estante do interessado na história literária e particularmente nas personagens envolvidas.

Por Getúlio Marcos Pereira Neves, membro do PEN Clube do Brasil.