Setembro, 2024 - Edição 302

Nunca mais vi Alice

o que guardo no coração? / o poema que fiz para Alice/
o poema que entreguei para Alice à porta do bar na Rua Farani/
o beijo na boca que ganhei de Alice por causa do poema (...)


Nunca mais vi Alice, após aquele beijo cinematográfico e irreal à porta do bar da Rua Farani, em Botafogo. Alice era aluna do primeiro ano de Jornalismo da Faculdade Hélio Alonso, onde morei, oficialmente, alguns dos meus melhores anos de sempre. Daquele beijo resta o doce sabor, o fragmento que se esconde na parte mais esquecida da memória, e que só vem ao de cimo quando o corpo e o ânimo estão em decadência. Resta um pouco de Alice no meu cofre, no poema que encerra um código de acesso ao passado, mas que torna real todos os fantasmas no exato momento em que os ressuscitamos. Alice simplesmente desapareceu depois daquele beijo. Nunca mais vi Alice.

Nunca mais vi Rosane, o meu primeiro grande amor de faculdade, a primeira namorada. O amor, neste tempo, era algo inconsequente, infantil, volúvel como todos os cheiros acabados de sair da adolescência. Por ela, cheguei a sonhar, sentia-me grande, muito maior do que aquilo que eu e as minhas competências podiam oferecer e não ofereceram. O namoro acabou, uma tristeza profunda adveio e um primeiro desgosto de amor instalou-se até o aparecimento de um outro grande amor... a senhorita M., a senhorita T., a senhorita R. (que não se chamava Rosane) e, algumas senhoritas depois... Leonor, aquela que prendeu o meu coração até os dias de hoje, e que era aluna de outra universidade.

Nunca mais vi os meus parceiros de cineclube, o Alberto R., o Cal G. e o Marcelo A., que morreu de Aids e que levou com ele um bocadinho da juventude de cada um de nós. Bons tempos das sextas-feiras à noite, com cada sessão de cinema a arrebentar pelas costuras de tão cheia que ficava a sala de projeção; tempos de atritos com a direção da faculdade, pois cada sessão era acompanhada pela deliciosa maresia da maconha que inebriava o recinto. As vozes da delação bateram com a língua aos ouvidos da direção, que não gostou das boas novas, e ameaçou retirar o espaço onde decorriam as sessões do Cineclube Limite (que depois virou Z). Nós, dirigentes idealistas do cineclube ripostamos, contrapondo que a universidade era um espaço de liberdade e de experimentação. A faculdade manteve-se irredutível. Nós organizamos um debate no auditório, sobre a liberdade de algumas drogas na faculdade. Os alunos, professores, curiosos, maconheiros e outras tribos marcaram presença e, no final, o bom senso (a lei) da maioria levou a melhor: sessão de cinema sem maconha 227, sessão de cinema com maconha 198 (números fictícios, ora pois). Atritos à parte, a lembrança mais nostálgica que guardo destes dias é a de ver a minha película preferida, Blade Runner (que já assisti 34 vezes no cinema ao longo da minha vida), envolto num fumacê da erva maldita; mesmo quem não fosse adepto deste desporto ficava algo alucinado só pela densidade do fumo, que emprestava a qualquer filme projetado uma aura de glamour.

Nunca mais vi o meu amigo Ricardo, a primeira e única pessoa na faculdade com quem saí na porrada; logo eu, com este corpo de jogador de baralho e, o outro, um armário de porta aberta de frente para mim. É uma das recordações que guardo com algum carinho, pelo inusitado da situação; afinal nunca fui apologista da violência e não sou o típico macho-alfa que anda solto pelas ruas, com vontade de bater em toda gente. Mas vejamos este pequeno episódio caricato da minha trajetória universitária.

Era uma vez um rapaz (eu), vinte e dois anos de puro idealismo (eu), que apesar de tímido (eu), era muito popular na faculdade e que, um belo dia, sente-se observado, ostensivamente, por um outro rapaz que, não sendo gay (como eu), andava sempre acompanhado de outros rapazes com tomates cheios (expressão portuguesa que pode traduzir-se por um período de abstinência sexual ou, na linguagem popular masculina, “homens com falta de mulher”) prontos para o jogo de futebol (como convém nos locais onde se educam as pessoas). Este olhar inquiridor logo ganhou ares de intimidação seguido de provocação, desafios gestuais e risadinhas grupais.

Mas como todo o medo tem o limite do nosso amor próprio, o jogador de baralho (eu), franzino (eu), ganhou coragem e mandou-lhe o seguinte petardo: – tu és muito bonito cara (nestes anos ainda estavam em uso esta expressão), deves fazer imenso sucesso com as mulheres e, por isso, estás sempre acompanhado por estes homens todos. E enquanto eu falava, as minhas pernas deixavam o seu estado de letargia para trás e seguiram na direção do meu inimigo das últimas semanas... das pernas brotaram mãos e das mãos socos, pontapés e escoriações nos dois lados da barricada; logo apareceu o pessoal do “deixa disso” e, separados pelo segurança da faculdade, cada um seguiu para o seu lado com as verdades repostas no seu devido lugar; eu, com a certeza triunfante de ser campeão de nenhuma coisa e ele, na altivez do campeão de coisa nenhuma. Certo dia, um amigo me disse que dois homens só se respeitam de fato quando saem na porrada um com o outro. Apesar de não concordar com esta filosofia da testosterona, neste caso específico, o que aconteceu foi que, passado muito pouco tempo, eu e o Ricardo estávamos bebendo umas cervejas na Rua Farani e, detalhe, nunca falamos sobre o ocorrido.

Nunca mais vi Flávio, colega de turma e de biritas. Nunca mais o ouvi dizer: “Brizola mandou tratar o bandido por cidadão.” Parecia um disco arranhado, estava sempre a repetir a mesma ladainha; mas era um bom diabo e juntos percorremos – à caça das mulheres, do paraíso e da perdição – muitos bares, pulgueiros, espeluncas de final de noite, e forrós em São Conrado, Catete ou no Centro do Rio de Janeiro. Não havia bar (ou algo que se parecesse com um) que não conhecêssemos; do Leblon à Zona Norte, tudo era passado a pente fino pelo nosso escrutínio e, o final, quase sempre era o mesmo: nenhum glamour, ou gente bonita, e a companhia do angu do Gomes, na Praça XV, no Centro da cidade, às quatro da matina. Até hoje ainda estou para perceber porque nunca tive uma intoxicação alimentar por ter comido aquela iguaria ao final de cada noite bem regada. Tempos bem vividos do sexo puro e sem espinhas, muito mais do que o rock and roll ou as drogas; tempos em que inventaram a danada da Aids, e as camisinhas passaram a estar em todas as carteiras, porta-luvas ou no bolso de trás das calças jeans surradas, e quase sem nenhum índigo. Nunca mais vi Irapoã e a sua alegria que invadiam qualquer espaço por onde passava. Nunca mais ouvi aquela voz cristalina que cantava Nascente, na sua interpretação a imitar à do Grupo 14 Bis, e emocionava todos à sua volta. Nunca mais vi o amigo que sofreu um acidente de bicicleta, ficou paralítico e aflorou o pior de nós mesmos: a impotência e o egoísmo.

Nunca mais vi o olhar maternal de Louise, o sorriso espaçoso de Mariângela, a língua afiada de Janete, a beleza índia de Liliana, a doçura da Patrícia T., a voz aguda de Claudinha. Nunca mais vi os meus amigos de faculdade. Nunca mais me olhei naquele espelho.

Nunca mais vi aquele Ozias dos tempos de faculdade; tão completo, tão sem amarras, utópico, sonhador sem limites. Mas hoje, também sou um bocadinho daquele Ozias que fui; a diferença reside na capa de maturidade que temos de vestir para parecermos homens sérios e de respeito. Por isso sou feliz, mas fragmentado. Uma colcha de retalhos que muda conforme a cor de cada trapo, mas que visto de longe não deixa de ser agradável aos olhos. De perto, lá estão as mazelas dos anos em cada costura, em cada dobra. Mas sou feliz por ter tido a possibilidade de viver aqueles anos; sou feliz porque também sou o somatório destes anos de ouro, e que eles estarão sempre vivos em todas as vezes que eu os nomear

Por Ozias Filho, poeta, fotógrafo, jornalista e editor. Autor de Poemas do Dilúvio, Páginas Despidas, O Relógio Avariado de Deus, Insulares, Os Cavalos Adoram Maçãs e Insanos. 1 – Extrato do poema Cofre, do livro Poemas Infantis para Quando Eu for Grande, de Ozias Filho