Setembro, 2024 - Edição 302

O homem da Constituição - Entrevista com Bernardo Cabral

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura



Arnaldo Niskier: Hoje, temos o privilégio de receber a visita do advogado, professor, deputado, senador, Bernardo Cabral. Ele é uma das figuras mais importantes da advocacia do nosso país. Foi presidente do Instituto dos Advogados, mas se notabilizou, na verdade, na discussão em torno da Constituição da República de 88. Quero que ele recorde um pouco do que aconteceu desse convívio de Bernardo Cabral com Ulysses Guimarães.

Bernardo Cabral: Em primeiro lugar, quero dizer que é um prazer estar aqui com você. Não é a primeira vez que estamos juntos e ao longo do tempo...

Arnaldo Niskier: 67, foi a primeira vez.

Bernardo Cabral: 67, vou lhe dizer como e quando. Você lembrou bem, mas eu devo lhe dizer que eu fui presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, não do Instituto. Sou membro do Instituto há mais de 50 anos e tem uma cadeira lá com o meu nome, você registrou bem e eu queria apenas lembrar.

Arnaldo Niskier: Lembrar o que é devido.

Bernardo Cabral: Estava olhando para você agora com os cabelos todos brancos e estava me lembrando que, na altura de 1967, você tinha um programa junto com Murilo Melo Filho, chamado Debate em Manchete. Eu tinha feito um discurso forte na Câmara, uns dos que motivou a minha cassação. Perdi os dez anos de direitos políticos e você, naquela altura, e o Murilo eram jovens jornalistas brilhantemente respeitados, como são até hoje. Ele faleceu deixando só você, infelizmente. Lembro que, naquela altura, ia muito com a minha mulher a Caxambu. Às vezes, saíamos para São Lourenço e, um dia, na estrada, porque você vê na estrada, tem sempre aquela placa, retorno a 100 metros, retorno a um quilômetro, tem sempre o retorno. E num desses dias, num para-choque de um caminhão, vi uma coisa que considerei antológica. Era uma frase, provavelmente do motorista, que dizia: “Na estrada da vida, não existe retorno.” E estou vendo agora realmente que não podemos retornar, nem eu, nem você aos cabelos negros daquela altura. Mas, naquela altura, estávamos em pleno governo militar e vocês eram muito corajosos, porque conseguiram embutir numa entrevista o que seria censurado previamente pelo governo militar, não fosse a inteligência que você sempre teve, sempre abusou dela, justiça seja feita. Lembro que o tempo foi passando e chegamos a Assembleia Nacional Constituinte.

Arnaldo Niskier: Você como relator geral.

Bernardo Cabral: E fui o único relator das Assembleias Nacionais Constituintes, no Brasil só tivemos cinco. Fui eleito pelos deputados que eram a composição do nosso partido. No Império, o imperador escolheu o relator, depois, quando veio a República, todos foram escolhidos ou pelo presidente da República ou pelo presidente da Constituinte. Ulysses não me escolheu, não escolheu nem a mim nem a ninguém. Ele foi tangido por toda a bancada para que fosse escolhido o relator pela bancada. Tínhamos três nomes: o Fernando Henrique Cardoso, que era líder do MDB no Senado; o Pimenta da Veiga, que era líder do partido na Câmara; eu era do MDB, eu fui fundador do MDB, que depois virou PMDB. Soubemos que o Pimenta da Veiga tinha sido a ele prometido, como mineiro, pelo próprio Tancredo Neves, que era primeiro, que ele o escolheria da sua eleição para presidente, para relator. Foi o Tancredo quem escolheu aquela comissão de grandes juristas, presidida por Afonso Arinos, para fazer um relatório e um projeto, um esboço para a Assembleia Constituinte e foi feita. Só que o Fernando Henrique era paulista e tinha o beneplácito para o Ulysses. Então havia um choque, entrei e disse: “Ulysses, eu fui deputado federal cassado, eu fui presidente da Ordem dos Advogados, o Fernando Henrique é um homem de muito talento, tanto foi brilhante, que foi presidente da República...”

Arnaldo Niskier: E meu colega hoje na Academia Brasileira de Letras.

Bernardo Cabral: Merecidamente. “E o Pimenta da Veiga é um advogado de poucos anos, eu já tenho quase 20. De modo que eu não vou querer que isso seja assim.” E alguém da reunião das lideranças disse: “Isso aqui não é um compadrio. Isso tem que ser escolhido pela bancada.” Então fomos escolhidos para a bancada, os três para falar e disputar. Fernando Henrique falou primeiro, eu falei em segundo e o Pimenta falou por último. Feito um escrutínio apurado, o Fernando Henrique teve 90 votos, eu tive 94, mas o Pimenta da Veiga teve 94. Empatamos e o Fernando Henrique foi excluído. Disputamos um segundo turno, tive 120 votos e o Pimenta teve só mais uns quatro ou cinco votos. De modo que fui escolhido relator. Com essa escolha, que eu tinha denunciado no meu discurso, que se fosse escolhido, não seria subordinado nem ao presidente da República, Sarney, nem ao presidente da Constituinte, Ulysses. Eu era independente, porque inclusive era deputado cassado, que tinha cumprido os meus dez anos de direitos políticos. Perdi e cumpri, nunca fui anistiado. Eu cumpri a minha pena. Então, havia uma independência total e foi assim que fizemos. Só que o Sarney, quando chegou ao trabalho do Afonso Arinos, ele engavetou, porque todos que tinham terminado o trabalho nessa comissão de notáveis sugeriam que o nosso sistema de governo fosse parlamentarista. E, é claro, o Sarney, como era presidencialista, arquivou e não mandou. E a Assembleia Nacional Constituinte começou do nada, pedra sobre pedra, tijolo sobre tijolo, não tinha absolutamente nada. Começamos com oito comissões temáticas, cada uma é o título da Constituição, mas se subdividia em três subcomissões, tinha um relator da subcomissão e um relator para cada comissão. Mas a principal era o meu trabalho com a Comissão de Sistematização, que era do relator, que depois foi o relator geral. Conquistei muitos adversários, porque, quando chegaram às minhas mãos os trabalhos das comissões temáticas, havia uma coisa que se sobrepunha a outra. Então, de 2000 e tantos artigos, reduzimos a Constituição para 245. Infelizmente, hoje ela está cheia de emendas, cujo propósito não é bem discutido...

Arnaldo Niskier: Na verdade, desfiguram a chamada organicidade desse instrumento.

Bernardo Cabral: Realmente, como o tempo passou, as pessoas vão esquecendo da época dura que tivemos, porque estamos saindo, com o trabalho da Constituinte, de uma excepcionalidade institucional para um reordenamento constitucional. Aqueles áulicos que gostam sempre de endeusar quem está na Presidência da República diziam que a Constituição não duraria seis meses, que ela tornaria o país ingovernável. Eu tinha três excelentes relatores adjuntos. Só esses três foram relatores adjuntos. Vou citar o nome com muito respeito, porque muitos se intitulam que foram relatores substitutos, não, só esses três. O único que está vivo é o senador José Fogaça, grande parlamentar, foi inclusive prefeito de Porto Alegre, está vivo, é um grande jurista, um bom advogado. Depois Konder Reis, que foi o relator daquela Constituição, que foi governador de Santa Catarina, grande constitucionalista. E o Adolfo, que era um deputado aqui do Rio de Janeiro, apesar de médico, era um bom tributarista também, então esses três eram relatores adjuntos. O que eu quero dizer é que o nosso trabalho, com o apoio do Afonso Arinos, que era o presidente da Comissão de Sistematização, aprovou o sistema parlamentarista, mas, quando chegou no plenário, aqueles cidadãos que estavam muito interessados, que tinham recebido canais de televisão e de rádio, derrubaram e votaram o sistema presidencialista. Eu me lembro, o Fogaça de testemunha está aí, que chamei o líder do pessoal presidencialista e disse: “Olhe, vai correndo, você que é o líder com os teus companheiros, e tira a medida provisória que está no texto do projeto, que medida provisória não convive com sistema presidencialista, só com sistema parlamentarista. Sabe por quê? Porque vocês darão ao presidente da República, se não retirar a medida provisória do texto, uma arma que nenhum ditador tevede poder, que ele vai se substituir, vai substituir o Poder Legislativo.” E foi o que aconteceu, não tiraram e isso ficou. Por que eu digo isso? No presidencialista, o chefe de governo e o chefe de Estado é uma pessoa só. Mas no sistema parlamentarista, o primeiro-ministro é o chefe do governo, e o presidente é o chefe de Estado, que é o caso da Inglaterra, onde tem o sistema parlamentarista. O cidadão, ao assumir o governo, apresenta o seu projeto de governo e é isso que o sistema parlamentarista exige. Se ele for aprovado, ele fica. Se não for aprovado no governo dele, ele tem que sair. No presidencialismo, o primeiro presidente da República sofreu impeachment, segundo sofreu impeachment e não houve, como no passado você se lembra... Quando o Costa e Silva teve o acidente vascular cerebral, quem deveria ter assumido a Presidência da República era o Pedro Aleixo, que era o vice- -presidente, mas o trio não deixou. Quem foi que assumiu? O ministro da Marinha, ministro da Guerra e o ministro da Aeronáutica, essa trindade proibiu o vice-presidente de assumir. Mas veja na atual Constituição, quando o Presidente da República sofreu impeachment, o Collor de Mello, quem assumiu o governo não foi a trindade militar, foi o vice-presidente da República. Depois, com a senhora Dilma também, quem assumiu a Presidência da República foi o vice. Por quê? Porque a Constituição de 1988 fez o que lhe disse, o reordenamento constitucional, tirando o país da excepcionalidade, então esta é que é a Grande Constituição. Paro por aqui porque é muito longa essa história.

Arnaldo Niskier: É muito bonito. Estive com o presidente Sarney há pouco, na Academia Brasileira de Letras. Ele foi à posse da Lilia Schwarcz e estava lá firme. Elogiou meus cabelos brancos, fiquei muito orgulhoso de ter estado com ele. Ele era presidencialista ou era parlamentarista?

Bernardo Cabral: Ele era presidencialista. Não sei agora como ele é, mas naquela altura foi ele, por ser presidencialista, quem mandou arquivar o trabalho do Conselho na comissão de notáveis. Sarney assumiu, não porque tinha sido eleito presidente da República, assumiu a vacância deixada por Tancredo Neves. Se o Tancredo Neves tivesse assumido a Presidência da República, ele teria, sem dúvida nenhuma, aproveitado o trabalho. Agora quero apenas dizer para o grande público que tem uma coisa que vocês não sabem. A morte do presidente Tancredo Neves motivou duas coisas. Eu sei, porque estava presente, quando ele convidou para ser ministro de Educação exatamente o cidadão que está me entrevistando. Mais uma perda que a nação teve, porque até hoje nunca tivemos um secretário de educação do calibre, da qualidade de Arnaldo Niskier.

Arnaldo Niskier: Mas você foi ministro da Justiça...

Bernardo Cabral: No governo Collor. Quando ele me convidou, disse a ele que não aceitaria, porque eu tinha feito a campanha toda de Ulysses, já que eu era muito amigo. Eu era do PMDB, mas ele foi muito correto, disse: “Quero alguém que tenha o seu estofo constitucional, por isso eu não faço nenhuma restrição.” Disse ao Ulysses que tinha sido convidado, ele aprovou, o Mário Covas... Todos aprovaram que era bom que fosse um amigo. E fui até a hora em que foi possível permanecer. Quando não foi mais possível, pedi exoneração.

Arnaldo Niskier: Mas você foi um homem da cultura política do nosso país muito importante e por isso recebeu vários títulos. Doutor Bernardo Cabral é doutor honoris causa de uma série de universidades brasileiras, como a UNIRIO, como a Santa Úrsula, tudo com muito mérito. E a gente tem orgulho de ser amigo dele. Sua atividade hoje diária, como consultor da Confederação Nacional do Comércio de Bens e Serviços...

Bernardo Cabral: É consultor da presidência.

Arnaldo Niskier: Consultor da presidência. O Presidente da CNC é José Roberto Tadros, uma outra figura notável da política da administração do nosso país. Como é esse trabalho de consultor da presidência?

Bernardo Cabral: Em primeiro lugar, para ser repetitivo das frases de sempre, quero dizer que há 20 anos eu abandonei a política, definitivamente, nunca mais aceitei nenhum convite, porque achei que os políticos brasileiros... Por exemplo, na minha época de senador, eu sentava de um lado com o Afonso Arinos de Melo Franco e de outro, com Nelson Carneiro. Era outro nível. Abandonei definitivamente, não uso nem o título. Quando me chamam de senador, fico relembrando aqueles tempos, não que seja hoje a política brasileira, nem faço nenhum comentário. Mas, com este abandono, quando Antônio de Oliveira Santos, que faleceu, foi um grande presidente da Confederação Nacional do Comércio, disse a ele que aceitaria com algumas condições: o primeiro de não ter horário de trabalho, férias, porque eu fazia muitas conferências fora do Brasil, hoje já não saio mais do Rio de Janeiro. Tenho 92 anos de idade, trabalho diariamente, ando com as minhas pernas, não sinto nada, tive um problema na mão. O que me agrada muito é saber que, na atual composição da Confederação Nacional do Comércio, não há nenhuma solução de continuidade. O professor, historiador, advogado, empresário José Roberto Tadros, que é meu conterrâneo no Amazonas, a nossa família se dá há 100 anos, você não era nem nascido.

Arnaldo Niskier: Seu amor pelo Amazonas é notável, só posso dizer isso.

Bernardo Cabral: Eu e eles somos muito ligados ao Amazonas. Ele foi presidente da Federação e construiu no estado inteiro uma grande federação, de modo que ele me convidou para continuar. Estou muito feliz, porque ele é realmente um cidadão que vive no exterior, promovendo a nossa confederação, vive no interior do Brasil, vive em Brasília com as grandes hostes governamentais. Quer dizer, ele é um lutador pelo crescimento da Confederação Nacional do Comércio. E lhe digo mais, talvez no mundo inteiro não haja uma Confederação do estofo da gente, dos empregados, do que ela faz, dos convênios. Todos os seus empregados, nesses três anos ou dois que nós tivemos da Covid, nenhum deles sofreu redução, nem nenhum deles deixou de receber mensalmente o seu salário. Foi tudo cumprido rigorosamente. Ainda hoje que estamos fazendo aqui neste domingo, ele está voltando do exterior, onde estava uma semana atrás, duas semanas em Brasília, tratando de assuntos da Confederação. Ele hoje não foi o governador do Estado porque não quis, não foi senador pelo Amazonas porque não quis. Então estamos com uma repercussão, no Brasil inteiro, do nosso trabalho, tanto assim que, no governo passado, quando o Ministério da Fazenda dizia até que ia dar uma facada, teve um comportamento com Tadros, que foi um comportamento de entendimento. Começaram a saber o que é que ela faz, no que é que ela atua sem fazer publicidade da sua atuação. De modo que me sinto muito feliz de estar ali. E mais ainda, porque, nesta Confederação, existe um conselho de notáveis que você sabe melhor do que eu, porque você é um dos integrantes e é um brilhante integrante, que nenhuma outra Confederação, em nenhuma outra parte do nosso estado, do Brasil tem igual aquele nível, um negócio altamente...

Arnaldo Niskier: Que se reúnem todas às terças-feiras.

Bernardo Cabral: Todas as terças-feiras, religiosamente. Todos os que são integrantes têm acima de 60 anos. Ali só entra quem for advogado, ou economista, ou historiador, ou professor, ou um grande especialista em educação, porque uma matéria que ronda a Casa é sempre a educação, que prestamos educação a nossos funcionários muito bem. E sabe quem é a maior autoridade nossa na educação? Procure saber quem é o secretário de educação do Estado, quando era da Guanabara, do Rio de Janeiro, foi quatro vezes secretário de educação que você vai encontrar.

Arnaldo Niskier: E, com sua ajuda, construiu a Escola Sesc de Ensino Médio, que é um modelo de escola.

Bernardo Cabral: Hoje, dificilmente, com exceção da revista Justiça e Cidadania (que fui um dos quase fundadores, com Alfredo, que hoje tem um filho que também trabalha muito pela grandeza da revista), dou entrevista. Mas em televisão, não é que recuse, digo que não tenho tempo, não quero dar uma declaração que possa ferir a nossa tese lá na Confederação, mas é porque me falta o estímulo de olhar como eu estou olhando para você e me lembrar que há 50 anos brigávamos pelo Brasil, mas brigávamos seriamente. Não havia uma palavra nossa que não fosse pela Constituição. Nunca contribuímos para denegrir a honra de alguém, para falar mal de alguém, era sempre para construir, para colaborar.

Arnaldo Niskier: Você, que dirige o conselho de notáveis, é quem faz os convites para as palestras às terças-feiras e sempre cuidando para que sejam pessoas que amem o nosso país e sejam patriotas. E essa é uma característica que quero louvar muito no nosso programa, elogiando o que Bernardo Cabral tem feito pelo nosso país e a sua presença marcante no dia de hoje aqui em nosso programa.

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura