Setembro, 2024 - Edição 302

Bonecas

Fui uma menina apaixonada por bonecas. Havia as de pano, com vestidos de chita; as de rosto de louça; a de plástico, com cachos loiros, quase do meu tamanho, um sonho. Eu cuidava bem delas, penteava, colocava nos berços e carrinhos, pois eram os filhos que já desejava ter. Também eram minhas alunas. Eu as colocava em fileiras, fazia chamada no diário de classe, escrevia com giz palavras num quadro-negro e imaginava que elas eram capazes de soletrar. Avaliava sua atenção estática como prova de percepção e inteligência.

Quando li o Sítio do Picapau Amarelo, identifiquei-me com a Emília, a boneca de trapo, a princípio feia e muda que, a partir do momento que ingeriu uma pílula, passou a falar pelos cotovelos. Criatura atuante e impositiva que dominou o próprio criador, Monteiro Lobato. Acompanhei toda a evolução da boneca: as mutações, as tolices, as curiosidades, o espírito de crítica. Não sei em que livro da coleção, quando lhe perguntam: “Mas quem você é, afinal de contas, Emília?” Ela respondeu de queixinho empinado: “Sou a Independência ou Morte.” A independência, a liberdade, a autonomia, o bem-estar, o poder de tomar as próprias decisões. Eu me achava a própria. Quanto desassombro e orgulho. Hoje, adulta e envelhecida, tornei-me pequena e dependente de algo superior que me guia. O fato é que me diverti tanto com a Emília: o casamento dela com o porco Marquês de Rabicó; as aventuras com a chave do tamanho que fazia os insetos tomarem proporções gigantescas; as aventuras com o rinoceronte Quindim; as conversas com o anjo caído do céu; as peripécias pelas terras da Grécia Antiga com figuras míticas como Hércules e o Minotauro. Cavalguei nas caudas dos cometas com minha boneca Emília.

As bonecas também podem ser assustadoras, sinistras, ameaçadoras. Na feitiçaria, são usadas para representar pessoas trespassadas com alfinetes para causar dores e danos. Assumem a voz dos ventríloquos e os enlouquecem com sentimentos que não ousariam expressar abertamente.

Ao sul da Cidade do México, onde a morte é sempre vista numa mistura de flores e crânios, há um lugar misterioso chamado Ilha das Bonecas. No meio dos canais e dos nenúfares, uma espécie de santuário mal-assombrado tem bonecas penduradas em paredes, árvores e varais que vão se desgastando com o tempo, perdendo a beleza e a inocência e se transformando em objetos terríveis, lambuzados de sangue e poeira. Conta-se que um antigo morador da ilha ouviu falar que uma jovem havia se afogado no rio. Quando viu uma boneca flutuando, tomou isso como sinal, resgatou o brinquedo para agradar o espírito da menina. Uma boneca só não foi suficiente oferta e milhares se juntaram a ela, num cenário de filme de terror. Há choros e gritos de quem perdeu as filhas naquelas águas.

E quantas meninas, corpos de bonecas, agarradas ainda a suas bonecas, são vítimas de violência sexual, agredidas dentro de suas casas por pessoas manipuladoras, predadoras, que escolhem a vítima mais tímida, mais quieta e atacam o alvo fácil, a pombinha cálida, com suas garras de abutres abusadores.

A Casa de Bonecas, peça teatral do dramaturgo norueguês, Henrik Ibsen, em meados do século XIX, gerou polêmica e debates no mundo todo. O difícil tema da exclusão das mulheres. O relacionamento entre Nora e o marido Helmer parecia perfeito. Ele a chamava de “cotovia”, “esquilo”, “minha menininha”. Ela era mimada, infantil, uma criança grande, sem responsabilidade. Um dia, no intuito de agradar e ajudar financeiramente o marido, Nora envolve-se numa fraude bancária. O banqueiro a chantageia. O marido, ao descobrir, fica furioso e a julga uma pessoa sem caráter. Depois, arrependido, pede-lhe perdão. Mas a ilusão se rompera: a filha-boneca, a esposa-boneca torna-se uma mulher decepcionada. Abandona o marido e os filhos e vai embora sozinha para compreender a si e ao mundo. Declara que só voltará se acontecer um milagre: a transformação profunda de suas almas para uma verdadeira vida em comum. Partiu em busca da maturidade. Boneca fria.

E há homens tão solitários que se contentam com a companhia de uma boneca daquelas feitas sob encomenda para o sexo. É a história contada no intrigante filme A Garota Ideal, sob a direção de Craig Gillespie. Lars mora na garagem da casa de seu irmão. Não gosta de sair. Um dia avisa que trará Bianca, sua namorada, para o jantar. Explica que ela não fala inglês, que não anda, que precisa de uma cadeira de rodas. O irmão e a cunhada ficam felizes com a notícia e arrumam o quarto de hóspede. Lars aparece com a namorada e descobrem que ela é uma boneca. Tudo estranho, bizarro, mas muito delicado. Delicado entender como é difícil, às vezes torturante, a sede de amar e ser amado. Guardo minhas bonecas em prateleiras iluminadas, em baús chaveados no meu coração. Fui mãe, professora, poeta observada pelo jogo dos olhos azuis de vidro das minhas bonecas.

Por Raquel Naveira, da Academia Matogrossense de Letras.