Julho, 2024 - Edição 301
Pássaros
Incrível como os pássaros me visitam. Desde cedo ouço os seus
pios na janela, como se quisessem conversar comigo numa linguagem que
guarda o mistério da criação. São leves e rápidos esses mensageiros do céu.
Um, pousado na amoreira, olhando-me de soslaio, parece um profeta de
avental marrom e cabeça amarela.
O poeta Manoel de Barros (1916-2014) amava os pássaros. Corro até
a estante e encontro o livreto Compêndio para Uso dos Pássaros. Uma edição antiga, de 1960, da Livraria São José, do Rio de Janeiro. A capa ilustrada
com um desenho, talvez de seu filho João, então criança. A primeira parte
tem um subtítulo, De meninos e pássaros e inúmeras citações a aves do
Pantanal, daqueles ermos por onde andavam o poeta e seu menino João:
“Vi um rio indo embora de andorinhas”; “Nas ruas do vento brincavam
passarinhos”; “... aquele cardeal, você viu? Fez um lindo ninho escondido
bem”; “João chegava cheirando a pássaros com ilhas”; “o azul passava nas
garças o seu céu”; “árvores praticavam sabiás”.
Sim, poeta, naquele tempo andorinhas marcavam a primavera e
o verão. O cardeal amargava sua triste solidão. As garças esticavam com
elegância seus longos pescoços de penas brancas e os sabiás bicavam
laranjeiras em flor.
Neste abril chuvoso, folheio o livro Poemas Tardios, da escritora
canadense Margaret Atwood (1939), talentosa em ficção e poesia. A capa,
numa edição da Rocco, traz um rosto de mulher com retratos de três pássaros azuis, amarelos e pretos, talvez corvos, grous, gaviões ou melros, não
sei. A própria autora nos explica em carta aos seus leitores: “E pássaros.
Há mais aves nestes poemas do que nos livros anteriores. Desejo que
haja ainda mais pássaros no próximo livro de poemas, deve haver um, e
também desejo que existam mais pássaros no mundo. Que possamos ter
esperança.”
Há mesmo muitos pássaros nesse livro: aves cujos nomes não
desapareceram, pois os pássaros não precisam dos nomes perdidos; corvos como sinal (talvez de guerra, imagino eu diante das más notícias); o
colhereiro no musgo verde, entre velhos salgueiros; o albatroz voando alto
sobre o mar limpo; pássaros com asas de anjos e anjos com garras; um
tordo de voz adorável; uma pluma cortada e afiada que virou pena de tinteiro. E, finalmente, o poema mais lindo de todos que começa assim: “Se
os pássaros fossem almas humanas, qual pássaro seria você?” E termina:
“Sei que você não é um pássaro embora tenha voado para longe, muitolonge. Eu preciso que você esteja em algum lugar...” Doeu! Em que lugar
estará minha filha passarinha que voou para longe? Preciso ouvir a voz
dela, saber onde está, neste exato momento.
A pergunta ficou ecoando dentro de mim: que pássaro seria eu?
Uma coruja noturna, cheia de sabedoria? Uma águia inflada de vitória
e autoridade? Um beija-flor alegre e satisfeito com o mel das flores? Um
pintassilgo com uma mancha vermelha de sangue no peito? Uma galinha
sentindo falta de seus pintinhos para cuidar? Um pavão com olhos e estrelas na cauda? Um cisne cantando até a morte na expectativa de alcançar
a vida eterna?
De todos os pássaros, o que me representa é o rouxinol, doce e
queixoso, com seus afinados hinos de amor, saudade e dor, anunciando
um novo dia.
Escrevi:
Rouxinol
Não seria capaz de reconhecer um rouxinol...
Será um pássaro roxo?
Terá na garganta um sol?
De onde veio o rouxinol?
Da China?
Da montanha azul?
Do primeiro arrebol?
Como voa um rouxinol?
Alto, sobre as montanhas?
Baixinho, contornando o rio,
O prado que parece um lençol?
Como canta um rouxinol?
Com notas suaves?
Com tons de outono
Como alguém muito só?
Se abrisse a janela
Teria chance de ver entrar um rouxinol?
Será que ele pousaria sobre a caixinha de música
Ou sobre o meu cabelo em caracol?
Um pescador desavisado,
Que nunca tivesse visto um rouxinol,
Poderia confundi-lo com um peixe
Debatendo-se na ponta do anzol?
Quem faz da saudade,
Da dor,
Da melancolia
Um grande rol,
Deve trazer no peito
A pena de um rouxinol.