Julho, 2024 - Edição 301
A arte de furtar com unhas digitais
A Arte de Furtar deu, durante séculos, lugar a uma guerrilha de eruditos
e historiadores da literatura portuguesa, até se chegar ao apuramento da verdadeira autoria. Faz parte das polêmicas inacabadas, tais como a autoria das
Cartas de Mariana Alcoforado, a autoria
dos Túmulos de Alcobaça e dos Painéis
de São Vicente de Fora. O nome do pintor
é mesmo Nuno Gonçalves? Quem são as
figuras que retratou? Para que local se
destinou o político?
A obra permanece desde o início
envolvida em equívocos. Podemos ler na
Edição primeira: “Arte de Furtar, espelho
de enganos/ mostrador de horas minguadas/ gazua geral dos reinos de Portugal.
/ Oferecida a El rei Nosso Senhor D. João
IV para que a emende.” Indica depois:
“Composta pelo Padre Antônio Vieira,
zeloso da pátria” e, por último, acrescenta: “Amsterdam, na Off. Elzeviriana 1652.”
É dedicada ao rei D. João IV e ao príncipe
Teodósio e escrita a pretexto da multiplicidade de ladrões, “para que os leitores
se acautelem e o rei lhes dê o castigo que
merecem”. Estendia-se através da nobreza, da burguesia, dos militares e até do
clero. Exerciam “o ofício ilesos, devido à
destreza da sua arte, que os livra até da
justiça mais vigilante”.
Cada capítulo da Arte de Furtar constitui uma proveitosa leitura:
“Os que furtam com unhas reais; os que furtam com unhas militares;
os que furtam com unhas disfarçadas; os que furtam com unhas maliciosas; os que furtam com unhas descuidadas; os que furtam com
unhas sábias.” Não ignorou também noutros capítulos “os que furtam
com unhas de gato; os que furtam com unhas bentas; os que furtam
com unhas mentirosas; os que furtam com unhas alugadas; os que
furtam com unhas políticas; os que furtam com unhas de prata…”
Relativamente às tesouras, há a que se chama vigia; a que se
chama milícia; e a que se chama degredo. Seguem-se capítulos sobre:
“Que tais devem ser os conselheiros”; “Tribunal como e que tal”; “Voto
e parecer de cada um”. Remata este “tratado” com a “gazua geral” que
fecha e abre o pequeno grande “teatro das verdades”. Nuas e cruas.
Vivia-se um tempo de instabilidade política e social, de recuperação
da independência nacional e que se ressentia, ainda, da subordinação
ao domínio espanhol. Justificavam-se as desconfianças. As famílias da
nobreza tradicional, a hierarquia do episcopado e os quadros militares superiores agiram, com o maior desplante, durante os 60 anos da
ocupação filipina.
Séculos passados, em novembro último, antes de mais um
abalo sistêmico na Justiça portuguesa, o presidente do Supremo
Tribunal de Justiça dizia em entrevista que “o fenômeno da corrupção, que está instalada em Portugal, tem uma expressão muito forte
na Administração Pública. Isto não é uma simples percepção, é uma
certeza”. Segundo referiu Henrique Araújo, na altura “os intermináveis
recursos sucedem-se para as várias instâncias. E deita-se mão de muitos outros expedientes”. “Os ladrões, à solta, riem-se de todos nós. E
a Justiça? Destituída dos mecanismos essenciais para funcionar sem
bloqueios, contínua, de tribunal em tribunal. Sempre à espera das
condições indispensáveis para julgar e para decidir em tempo útil”,
referiu. As palavras transcritas do presidente do Supremo, queiramos
ou não, arrepiam e provocam as maiores apreensões. Tudo ou quase
tudo se resume ainda a uma questão de unhas. Só que as unhas (ou
gadunhas) tornaram-se hoje em dia digitais. São mais rápidas, têmmuito maior alcance e conseguem usufruir, de imediato, de valores
estratosféricos. A decomposição nas classes dirigentes, no episcopado
e noutros setores – inclusive dentro do próprio Governo – já ficara desmascarada na célebre Arte de Furtar, que viu a luz escassos anos após
o fim do domínio dos Filipes.
Poço de Ignomínias, Uma Questão Cíclica?
As guerras da Restauração circunscreviam-se à defesa e à restituição do território. Multiplicavam-se a voracidade, a falta de escrúpulos, os negócios obscuros. O desempenho de altos cargos não resultava do
mérito pessoal. Dependia do parentesco,
do suborno e outras circunstâncias que
agravavam o descalabro. Situações como
estas ocorrem, apenas, em certas conjunturas históricas, políticas e sociais? Ou
correspondem a uma tentação universal
da natureza humana, violando os códigos
penais e morais pela ambição de enriquecer ou pela necessidade de sobreviver?
Oliveira Martins, na História de Portugal,
quando procedeu ao “sumário da derrota”, a partir do reinado de D. Sebastião,
aponta os sintomas da decadência nacional e degradação do caráter português.
Pormenorizou os roubos escandalosos
das especiarias, das pedras preciosas e do
ouro, praticados no Oriente e no Brasil.
Eram repetidos por figuras da hierarquia
política e militar. Em face da absoluta falta de escrúpulos e da imparável
“semente da corrupção”, Oliveira Martins,
numa das frequentes generalizações, é
categórico em afirmar – aliás em sintonia
com Antero de Quental – que o português
“caiu num poço de ignomínias, perdendo
inteiramente a noção do próprio brio e
tornando-se, de pirata em chatim”.
Não era nova a acusação. Diogo
do Couto (1542-1616) – grande amigo
de Camões e contemporâneo destes
lamentáveis acontecimentos – descreveu
no Primeiro Soldado Prático os indecorosos negócios da Índia. Na
Antologia dos Grandes Autores, ao resumir o Soldado Prático – obra
primacial da cultura portuguesa – que só viria a ter edição póstuma
em 1790, organizada por Antônio Caetano do Amaral – comentou
Agostinho da Silva: “as cartas de Diogo do Couto, escritas já perto da
morte, são melancólicas e sem esperança; tudo se tinha perdido em
Portugal, mesmo a hipocrisia.”
Antônio Vieira, os Dois Ladrões
Proibida em Espanha, por édito da Inquisição de janeiro de
1755, a Arte de Furtar, segundo o mesmo texto, era “falsamente atribuída” ao Padre Antônio Vieira. Passou depois para o corpo dos Índices
Expurgatórios do mesmo Tribunal. Que outras objeções pertinentes se
formularam acerca da autoria, da “edição impressa” na Holanda e a
propósito da data da publicação? O Padre Antônio Vieira (1608-1697)
já havia falecido quando o livro entrou em circulação. O falso lugar
da impressão constituía um expediente para escapar à censura do
Tribunal do Santo Ofício (que, afinal, não conseguiu evitar). Por outro
lado, a oficina Elviseriana, em 1652, também já não existia.
O nome do Padre Antônio Vieira era, à primeira vista, aceitável.
Os ladrões constituíram, em 1655, o tema integral de um sermão de
Vieira, pregado na Igreja da Misericórdia, em Lisboa, na presença do
rei D João IV e da sua corte. Era o momento para chamar a atenção
para a promiscuidade no Brasil, na exploração dos índios e no tráfico
dos escravos. Mas a acusação de Vieira abrangia numerosos dignitários do Estado – como, aliás, se viria a provar – e uma gigantesca promiscuidade de interesses, conjugados com as mais sórdidas intrigas.
Vieira estabeleceu a diferença entre o pequeno ladrão e o grande ladrão: os que roubam para comer e matar a fome e os que roubam
descaradamente para aumentar a fortuna e ascender junto dos vários
poderes e manipular influências. “Estes roubam cidades e reinos: os
outros furtam, debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigos; os
outros se furtam são enforcados, estes furtam e enforcam.” Para incluir
os ladrões que ganharam estatuto internacional, Vieira salientava:“Quantas vezes se viu em Roma (era então Roma um dos principais
centros do mundo) ir enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro
e, no mesmo dia, ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter
roubado uma província.”
Os Tentáculos Intermináveis do Polvo
As contextualizações que Vieira concebeu, noutro sermão,
para condenar as práticas criminosas dos homens, recorrendo à
comparação com os peixes, voltam a revestir-se de plena atualidade.
Concentrou-se no polvo, nos seus tentáculos e nas suas metamorfoses.
Vieira passa a descrever o polvo: “Com aquele seu capelo na cabeça
parece um monge; com aquele não ter osso, nem espinha, parece a
mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão
modesta ou desta hipocrisia tão santa, o polvo é o maior traidor do
mar. Consiste esta traição do polvo, primeiramente, em se vestir das
mesmas cores, de todas aquelas cores a que está pegado (…) Se está
nos limos faz-se verde; se está na areia faz-se branco; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da
mesma pedra. (…) O polvo escurecendo-se a si, tira a vista dos outros,
e a primeira traição e roubo que faz é à luz, para que não distinga as
cores.” Sem mais considerações, Vieira interrogava: “E daqui que sucede? Sucede que outro peixe inocente da traição vai passando desacautelado, e o salteador que está de emboscada dentro do seu próprio
engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro.” Vieira
insistiu com outra estocada: “Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque nem fez tanto. Judas abraçou Cristo, mas os outros o prenderam;
o polvo é o que abraça e mais o que prende.” Será possível caracterizar
melhor, nos dias de hoje, os crimes de burla qualificada, de falsificação
de documentos, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal?
O editor da Arte de Furtar foi o genovês João Baptista Lerzo –
dixit Inocêncio, no “Dicionário Bibliográfico” – proprietário de uma
tipografia em Lisboa, no sítio do Loreto, em pleno largo do Chiado.
Comprara o manuscrito no espólio de um desembargador. O padre
João Baptista de Castro, que era das relações de Lerzo, consultou o
texto ainda inédito e reproduziu passagens no livro Hora de Recreio.
Concluiu ser o autor Tomé Pinheiro da Veiga “por analogias que lhe
pareceu encontrar no talho da letra e linguagem”, sintetizou João Lúcio
de Azevedo, na altura a autoridade máxima em Vieira. Mas o editor,
por convicção ou, sobretudo, por interesse comercial – explicou João
Lúcio de Azevedo –, não hesitou em publicar como sendo do Padre
Antônio Vieira. Prosseguiu, todavia, a confusão em sucessivas atribuições. Prevalecia, contudo, o nome de Antônio Vieira, a fim de garantir
êxitos editoriais e financeiros. Basta consultar as sucessivas atribuições concebidas
em Portugal ou no Brasil.
Manuel da Costa, o Verdadeiro Autor
As tentativas de clarificação provêm de personalidades tão
diversas, como Camilo Castelo Branco, Sampaio Bruno e da nossa
contemporânea Natália Correia. Deve-se, contudo, ao padre Francisco
Rodrigues (1873-1956) a revelação, devidamente fundamentada numa
comunicação proferida em 1940 no Congresso do Mundo Português: o
autor é o jesuíta padre Manuel da Costa.
A identificação, ainda mais documentada, para confirmar a
autoria do padre Manuel da Costa, pertence a outro jesuíta, o padre
João Pereira Gomes (biografado na Brotéria por Henrique Leitão) – que
tive o gosto de conhecer pessoalmente – no ensaio publicado na revista Colóquio (nº 34, junho de 1965), então dirigida por Hernâni Cidade.
Jesuíta alentejano, padre Manuel da Costa, natural da Granja,
conselho de Mourão, nasceu a 13 de outubro de 1601 e faleceu em
Lisboa a 11 de novembro de 1667, na Casa de São Roque. Foi professor
de Letras e Humanidades: prefeito de estudos (1648-1649) na universidade de Évora e reitor do
Colégio dos Jesuítas (1656-1659) em Faro.
Baseou-se o padre João Pereira Gomes na sua investigação em informações recolhidas no arquivo secreto dos jesuítas, em Roma, sobre
o texto da própria Arte de Furtar. De pesquisa em pesquisa deparou,
num testemunho, com a delação pormenorizada de Francisco Vicente,
outro jesuíta de Lisboa, enviada para Roma em 1660, às cúpulas da
Companhia de Jesus. O denunciante especificava, designadamente,
que Manuel da Costa era “pérfido, livre, atrevido”; fazia “comentários
sobre todas as profissões, repartições e tribunais, sem dar satisfação
aos superiores”. A acusação ainda revela que, em 1656 – tudo indica
que estava a lecionar em Faro – haviam sido encontrados no seu quarto “uns doces oferecidos por pessoa desconhecida”.
A Arte de Furtar é uma das obras mais significativas da literatura
do período da Restauração. Transpõe o espaço temporal em que surgiu.
Representa uma das mais vigorosas sátiras, não só daquela época
da literatura portuguesa, mas da literatura universal. É um panfleto
feroz, acerca do que se vê, do que se ouve e... do que se oculta. É uma
autópsia da situação real do país. Evidencia-se em momentos de crise
política e social, quando a corrupção se desencadeia a todos os níveis.
A Revelação de Teixeira Gomes
Os leitores assíduos ou ocasionais da obra literária de Manuel
Teixeira Gomes – repleta de anotações de memorialistas – não ficaram
certamente alheios à referência objetiva, num dos seus últimos livros,
ao relatar a existência física do único corrupto que havia em Portugal.
A corrupção ficou, até a morte, agarrada ao seu próprio nome de pia
de batismo ou de Registo Civil.
No capítulo “Figuras e quadros de pouca monta” inserido no
livro Carnaval Literário, Teixeira Gomes descreve uma deambulação
através de Ferragudo, no Algarve. Caminha de rua em rua e olha para
cada casa. Conhece toda ou quase toda a gente. Aproveita a oportunidade para indicar o prédio onde reside “o senhor António Joaquim
Corrupto, a pessoa principal da terra”. (Carnaval Literário, página 125
da edição Seara Nova, 1939).
Admirador incondicional de Manuel Bernardes – assim como
Antônio Sérgio e Francisco Vieira de Almeida, um dos maiores prosadores de todos os tempos da língua portuguesa – Teixeira Gomes
recomendava a leitura vantajosa e exemplar deste paladino do universo das palavras. Limitou–se, porém, no caso concreto, a mencionar
apenas o nome Antônio Joaquim Corrupto. Apetecia mais, muito mais.
Como seria o cidadão no convívio diário? Que profissão exercia? Vivia
dos rendimentos herdados ou adquiridos? É óbvio que não tinha o
cadastro dos execráveis sujeitos que andam impunemente por todo o
lado e acerca dos quais o presidente do Supremo Tribunal de Justiça
não hesitou em alertar as autoridades competentes, que sabem os
nomes e as moradas. Uma última questão: Antônio Joaquim Corrupto
recebeu a extrema-unção? Teve funeral católico? A família pagou missas de sufrágio? E como ficou Antônio Joaquim Corrupto referido nos
livros de tombo do cemitério de Ferragudo?